A nova legislação e regulamentação europeia obriga os bancos a disponibilizarem transferências imediatas, com custos equiparados às transferências tradicionais. A medida, que entrou em vigor em fevereiro e vai ser progressiva, representa um avanço significativo na rapidez e na confiança do sistema bancário europeu. No entanto, traz também novos desafios: as instituições terão de reforçar os seus mecanismos de segurança para combater a fraude num cenário onde tudo acontece em tempo real.
João Guerra, CEO da Nickel Portugal — fintech do grupo BNP Paribas que chegou ao mercado português em 2022 com a missão de democratizar o acesso a serviços financeiros essenciais — está na linha da frente desta transformação. Com mais de duas décadas de experiência em marketing estratégico, desenvolvimento de negócios e inovação digital, o CEO lidera a operação nacional da Nickel, que aposta numa combinação entre tecnologia e proximidade física, com uma rede crescente de pontos de venda em papelarias e tabacarias.
Em entrevista à Líder, João Guerra explicou o que muda na prática com estas novas regras, analisando os impactos diretos no bolso e na segurança dos clientes.
Que impactos é que estas novas medidas europeias vão ter no nosso sistema de pagamentos?
Estas medidas representam uma mudança estrutural. Não é apenas uma questão de velocidade. Estamos a falar de um novo paradigma na forma como o dinheiro circula. A transferência imediata passa a ser um direito — não um extra, não um serviço adicional, mas uma obrigação para todos os bancos e instituições financeiras que operem transferências SEPA tradicionais. Ou seja, o cliente que antes podia esperar dois dias úteis para ver uma transferência concluída, agora tem esse valor creditado em segundos. Isso transforma a experiência de pagamento e levanta novas exigências, tanto tecnológicas como operacionais.
E essas transferências deixam de ser um serviço pago à parte?
Exatamente. O legislador europeu foi claro: o custo das transferências imediatas não pode ser superior ao das tradicionais. Esta medida foi introduzida para garantir que a inovação chega a todos, independentemente da instituição ou do tipo de conta que têm. Mas a verdade é que, na prática, muitos bancos tiveram de rever o seu modelo de comissões. O que temos visto é a criação de pacotes com um número limitado de transferências gratuitas — geralmente associados a contas com mensalidades mais altas. O que é oferecido de um lado é recuperado do outro.
No vosso caso, como aplicaram estas novas regras?
Optámos por simplificar ao máximo: transferências imediatas ilimitadas e gratuitas, ponto final. Sem pacotes, sem condições escondidas. A Nickel nasceu com uma missão de inclusão financeira — isso significa também não criar barreiras ou escalões que limitem o acesso a funcionalidades que deviam ser universais. Acreditamos que a transparência é essencial para construir confiança.
Disse que não é só uma questão de velocidade. O que é que muda mais?
Segurança. E aqui há duas dimensões importantes. A primeira é a chamada ‘verificação do destinatário’. Sempre que um cliente fizer uma transferência, pode confirmar se o nome que inseriu corresponde ao nome real associado ao IBAN. Isso reduz drasticamente o risco de erros e aumenta a confiança, sobretudo em pagamentos mais avultados ou pouco frequentes. A segunda dimensão é a resposta dos bancos perante esta nova realidade: com as transferências imediatas, o tempo de reação desapareceu. Se algo correr mal, o dinheiro já saiu. Antes havia uma margem de 24 a 48 horas para travar fraudes. Agora, é tudo em tempo real.
Isso obriga a reforçar os sistemas internos?
Sem dúvida. É aqui que entra o investimento em tecnologia. Estamos a apostar em ferramentas de inteligência artificial para identificar padrões anómalos, prever comportamentos suspeitos e agir antes que a fraude aconteça. Não se trata apenas de proteger os nossos clientes, mas de garantir a integridade do ecossistema como um todo. Porque a confiança, uma vez abalada, é difícil de recuperar.
Essa verificação do nome aplica-se também a transferências internacionais?
Sim, essa será a próxima fase. A partir de outubro, a funcionalidade será alargada a transferências para IBANs estrangeiros dentro da zona SEPA. Aqui, o sistema funciona com graus de correspondência: pode dar um ‘match perfeito’, um ‘aproximado’ ou, em casos mais problemáticos, um ‘inexistente’. É uma validação diferente, porque há variações de nome entre países e sistemas bancários, mas continua a ser um instrumento muito útil.
E no caso das empresas? Há novidades que lhes dizem respeito?
Há uma ferramenta em particular que será bastante útil no contexto empresarial: o SPIN. É uma plataforma do Banco de Portugal que permite fazer transferências imediatas com base no NIPC — ou seja, sem necessidade de introduzir o IBAN. É semelhante ao MB Way em alguns aspetos, mas orientado para o segmento empresarial. Pode simplificar bastante os pagamentos entre empresas, sobretudo em contextos de volume ou urgência.
Em resumo, ganhamos todos em rapidez e confiança — mas os bancos enfrentam riscos maiores?
É esse o equilíbrio. O cliente final ganha agilidade, clareza e controlo. Pode fazer pagamentos mais rapidamente, com maior confiança de que está a enviá-los para a pessoa certa. Mas as instituições têm de operar num ambiente muito mais exigente, onde o tempo para detectar e reagir desapareceu. Isso exige investimento, visão estratégica e, acima de tudo, antecipação. Não podemos continuar a jogar com ferramentas do século passado num campo de jogo que avança todos os dias.
Temos cada vez menos tempo..
Sim. Nos últimos dez anos, temos assistido a uma transformação enorme — e não é só em Portugal. No fundo, a missão da Nickel passa por facilitar a vida das pessoas. Isso faz parte do nosso ADN: promover a inclusão financeira através da simplicidade, do preço justo e da eliminação de burocracias. Assim, muitas vezes, tudo se resume a poder abrir uma conta numa loja de bairro, numa tabacaria. Isso muda tudo.
Ainda existem muitas pessoas fora do sistema?
Mais do que se imagina. Em Portugal, existem mais de 800 mil pessoas não bancarizadas. É um número muito significativo. E quando analisamos porquê, percebemos que há dois fatores principais: o preço e a proximidade.
Pode explicar melhor?
Há pessoas que só querem uma conta para receber o salário, pagar despesas e fazer uma ou outra transferência. Ainda assim, pagam 8, 10 ou até 12 euros por mês — mais de 100 euros por ano. Depois, temos o abandono do interior. Os balcões fecham, não há multibancos, e para ir ao banco mais próximo é preciso fazer dez quilómetros. O nosso modelo responde diretamente a essas dores: baixo custo e proximidade física, com mais de 700 agentes (lojas, tabacarias, etc.) em todos os distritos de Norte a Sul de Portugal e desde dezembro na Região Autónoma da Madeira.
E há uma ligação direta entre inclusão financeira e social, certo?
Claramente. O Banco Mundial defende isso há anos: a inclusão financeira é uma das bases da inclusão social. Em Portugal, muitos setores dependem de trabalhadores estrangeiros. Mas sem conta bancária, ninguém assina um contrato — já não se paga em dinheiro ou cheques. Sem conta, há exclusão. Sem conta, não há trabalho, não há habitação, não há dignidade. O nosso modelo ajuda a resolver esse problema.
Também pensam nos mais jovens e digitais?
Sim, claro. A Nickel também é uma solução inovadora para quem viaja ou usa ferramentas digitais. Temos uma oferta sem custos em pagamentos e levantamentos fora da zona euro — sem comissões de câmbio, sem imposto de selo, nada. É uma vantagem real.
E no meio disto tudo, ainda há tempo para cafés e conversas sem pins e códigos?
Hoje em dia, já nem isso. Estamos cercados por códigos, passwords, apps… É a tal ‘panaceia digital’ — resolveu muita coisa, mas deixou muita gente de fora. E até nós, às vezes, já não conseguimos acompanhar tudo. É por isso que continuamos a apostar na presença física e no contacto direto. O digital é essencial, mas não chega a todos.
Lembra-se da sua primeira transferência?
Lembro! E lembro-me de tentar perceber como se construía um NIB (risos). Tive essa sorte — ou azar — de começar a trabalhar em consultoras ligadas à banca. Hoje em dia, com dois cliques faz-se tudo. Os meus filhos já nem sabem o que é o IBAN, fazem tudo pelo número de telemóvel.
E como é trabalhar com os bancos? Já se irritou este ano?
Não, de todo. Já trabalhei muitos anos na banca tradicional. Comparando com as fintechs, nota-se a diferença. Os grandes bancos são como petroleiros — tudo demora. Nós, na Nickel, somos muito mais ágeis. Desenvolvemos um produto em França ou Espanha e, com pequenos ajustes, lançamo-lo em Portugal no dia seguinte. São mundos diferentes, com ritmos diferentes. Mas é exatamente por isso que a nossa proposta faz sentido hoje.