Opiniões
A instrumentalização do medo em tempo eleitoral
A poucos dias das eleições legislativas, o Governo português anunciou que vai notificar cerca de 4.500 imigrantes em situação irregular para abandonarem voluntariamente o país. Esta medida, que poderia ter sido aplicada em qualquer outro momento, surge justamente no auge da campanha eleitoral — num contexto em que o discurso sobre imigração tem sido manipulado por determinados sectores políticos que associam, de forma sistemática, imigração e criminalidade. Torna-se inevitável perguntar: estará o Governo a ceder à lógica da extrema-direita, replicando a sua retórica para conquistar terreno eleitoral?
O que está em causa não é apenas a legalidade ou ilegalidade da permanência de determinados cidadãos estrangeiros no país. É o discurso que acompanha essa decisão, e a forma como ele alimenta uma visão distorcida e perigosa da imigração. Teorias conspirativas como a da “substituição populacional”, completamente infundadas, ou falácias recorrentes — como a ideia de que os imigrantes têm prioridade no acesso a apoios sociais, saúde ou habitação — são hoje repetidas até à exaustão, sem qualquer base factual. Mas quantos se questionam sobre quem está por trás desta narrativa? Quem constrói estas mentiras? E com que objetivo?
Estas ideias não surgem do nada. São alimentadas por sectores da sociedade que ocupam cargos públicos, que têm tempo de antena, que influenciam decisões políticas. E mais do que ignorância, o que se vê é estratégia: ao disseminar desinformação, desvia-se o olhar do essencial. Ao transformar os imigrantes em bodes expiatórios, o foco desloca-se dos verdadeiros responsáveis pelos problemas estruturais do país — a desigualdade, a especulação imobiliária, a degradação dos serviços públicos, a precariedade laboral.
Não é legítimo perguntar, então: quem tem como objetivo privatizar gradualmente serviços públicos essenciais para o povo, como por exemplo a saúde? Quem permite que a habitação se torne um bem de luxo? Quem promove políticas laborais que esmagam os salários e precarizam a vida? Certamente não são os imigrantes. E, no entanto, são eles o alvo fácil, o elo mais fraco, a distração conveniente.
Ao propagar um discurso de medo e desinformação, o que se constrói é um ambiente de hostilidade e exclusão. Cria-se a ilusão de que há cidadãos com direitos plenos e outros com direitos condicionais. Promove-se a ideia de que a solidariedade é uma ameaça e que a empatia é sinal de fraqueza. Mas será possível construir uma sociedade coesa quando se lança uns contra os outros? E que futuro pode ter uma democracia que normaliza a linguagem do ódio?
É fundamental perguntar: quem lucra com este clima de tensão social? Quem se serve da demonização do “outro” para ganhar votos? E, sobretudo: que tipo de sociedade estamos a tornar-nos quando aceitamos, em silêncio, que a exclusão e o medo sejam ferramentas políticas?
Portugal é, historicamente, uma nação de emigrantes. Milhões de portugueses partiram — e continuam a partir — em busca de uma vida melhor noutros países. Os portugueses sabem, na pele, o que significa ser imigrante, ser estrangeiro, ser “o outro”. Não será uma profunda contradição negarem, hoje, aos que aqui chegam, a dignidade que sempre exigimos para os seus ?
A dignidade humana não pode ser usada como trunfo político. As leis devem ser justas e respeitadas, sim — mas os discursos que moldam essas leis não podem ser construídos sobre o medo, a mentira e o ressentimento. A pergunta impõe-se: o que resta da democracia quando o preconceito se torna programa político?
A democracia enfraquece quando se deixa capturar pelo populismo. E o país perde quando troca a convivência pela perseguição. Em vez de procurar votos à custa dos mais vulneráveis, os nossos responsáveis políticos deveriam concentrar-se em construir soluções reais e inclusivas.
Porque quando o ódio se torna estratégia, a liberdade torna-se frágil. E a justiça, uma promessa por cumprir.
Miguel Cardoso,
Coordenador Nacional Black Europeans Portugal e Fundador do Colectivo Vozes Descoloniais