Responsável na Europa pelo Cluster das Doenças Raras da Pfizer, Ana Torres tem a seu cargo a liderança de 14 estruturas organizacionais em que a multinacional Pfizer está enraizada. Entre aviões, estabelece-se na sede da Pfizer em Portugal, no Lagoas Park, onde coordena uma equipa com cerca de duas centenas de pessoas.
Além desta indústria, na qual tem vindo a desenvolver uma carreira de mais de 20 anos, com experiência em diferentes multinacionais do setor, Ana Torres foi até março de 2022, e durante seis anos consecutivos, Presidente da Professional Women’s Network Lisbon (PWN Lisbon), organização sem fins lucrativos vocacionada para o desenvolvimento de carreira e com uma visão para a liderança e o talento assente na diversidade e inclusão.
É mãe de dois filhos, uma entusiasta por viagens e com tempo, ainda, para o que considera essencial: estar ao lado de quem mais precisa. Foi durante 14 anos voluntária da Comunidade Vida e Paz, na qual acreditou ter feito a diferença na vida do outro, dos outros, num ato de construção da igualdade que inspirou todas as perguntas desta conversa.
Paula Perfeito (PP): A Ana é uma líder nata. Não porque coordene pessoas há mais de 20 anos, mas porque o faz com a naturalidade de quem “apenas” precisa de ser genuíno para ser seguido e respeitado. Começo precisamente por aí. Como define liderança?
Mais do que uma competência, a liderança, que encerra em si várias competências, é uma forma de estar, inspirando pela verdade, com o propósito de servir os outros. É hoje mais do que nunca fundamental que a definição inclua humanismo e foco nas pessoas, pois a liderança faz-se para os outros, permitindo que todos cresçam e que a equipa evolua mais feliz e fortalecida.
PP: Em 2016, deixou o cargo de Country Manager da Pfizer em Portugal e assumiu a atual função, no âmbito da qual lidera, na mesma multinacional, mais de uma dezena de países na Europa, com a responsabilidade das doenças raras. Que balanço faz desta experiência?
Foi um momento de enorme mudança na minha vida profissional, pois adorava a minha função de Country Manager em Portugal e estava ainda numa curva acelerada de crescimento. Mas a possibilidade de ter uma experiência internacional foi mais forte. Liderar equipas em países tão diferentes culturalmente trouxe-me uma responsabilidade acrescida, que me permitiu crescer em áreas que eram fundamentalmente novas para mim. Tem sido uma aventura fantástica em que continuo entusiasmada como no primeiro dia, pelos desafios constantes e diferentes com que sou confrontada diariamente. Manter esta energia positiva em tudo o que fazemos tem os seus desafios, mas sentir que hoje fazemos mais e melhor que ontem é o que me orienta e incentiva.
PP: Eduardo Lourenço disse que «o mundo real começa quando saímos de nossa casa para encontrar os outros». Que olhar ganhou sobre os profissionais portugueses ao obter essa proximidade com tantas outras nacionalidades?
Crescemos sempre que interagimos com os outros, tal como quando lemos um livro ou vivemos uma experiência nova. É da partilha e da escuta ativa que conseguimos crescer e evoluir. E isso acontece quando interagimos com diferentes culturas e com formas diversas de olhar o mundo, por lentes diferentes e mais coloridas, por vezes. Percebi cedo que cada um de nós é um ser individual com características próprias, que também se formam pela nossa geografia, mas a forma como a equipa vive os momentos é o que nos torna melhores e mais interessantes. É na diversidade que encontramos caminhos e soluções mais inovadores e sustentáveis, que nos permitem sonhar com um mundo melhor e mais feliz.
PP: A Ana é uma mulher de causas. A especialização que ganha nesta responsabilidade maior na Pfizer – as doenças raras – materializa mais uma das suas missões?
Quando refleti sobre o meu propósito de vida – fazer a diferença na vida dos outros –, percebi que as minhas escolhas faziam todo o sentido, como se naquele momento tivesse percebido porque tomei determinadas decisões em momentos chave da minha vida e porque acredito em causas maiores do que eu. O facto de ter iniciado a minha carreira profissional na indústria farmacêutica, e nunca de lá ter saído, é compreensível, pois tenho um papel a desempenhar no acesso dos medicamentos aos doentes e isso entusiasma-me cumprindo diariamente o meu propósito. Atualmente, numa área tão específica, como é a das Doenças Raras, tudo faz ainda mais sentido, pois apenas 5% destas doenças têm tratamento farmacológico e o nosso papel é ainda mais vivido, sempre acompanhado pela responsabilidade presente de que a nossa eficiência pode ser determinante para os doentes e suas famílias.
PP: Vivemos hoje um paradigma organizacional em constante mudança, em permanente crise e com fatores de imprevisibilidade grandes. O mundo está a mudar muito rapidamente e temos de acompanhar essa mudança. Por isso, nas organizações há uma tendência crescente para valorizar a versatilidade, o maior número de competências, a inteligência emocional, o equilíbrio entre a vida profissional e a vida familiar, as chamadas soft skills. É assim que vê?
O mundo atual é mais acelerado, em mudança constante e com um nível de incerteza inesperado, colocando as organizações e as pessoas em esforço constante de adaptabilidade. O mundo VUCA é agora BANI, Frágil/Ansioso/Não-linear/Incompreensível, o que implica mudarmos muitas das ferramentas utilizadas até agora, assim como as competências, que trazem na flexibilidade e no pensamento criativo muitas das forças que procuramos para encontrar as melhores estratégias e cenários futuros. Muitas das respostas que procuramos hoje, não se ensinam, encontram-se no pensamento divergente das equipas e na partilha com transparência e verdade, assumindo as nossas fragilidades e desconhecimentos para avançar.
PP: Entre março de 2016 e março de 2022, foi Presidente da Professional Women’s Network Lisbon – uma organização que chega a Portugal em 2011, mas que foi enraizada nos anos 90 em Paris. Aqui, bateu-se pela igualdade no acesso a lugares de gestão de topo nas organizações portuguesas. Qual a visão da PWN Lisbon para lá chegar?
A nossa visão foi sempre de diversidade e igualdade de oportunidades. A PWN Lisbon tem procurado encontrar formas e programas que possam ajudar as mulheres, em todas as fases da sua progressão profissional, a desenvolverem competências fundamentais para que possam ambicionar atingir os seus objetivos. Outro eixo estratégico importante tem sido o alerta constante e o trabalho de parceria com organizações e organismos públicos, para que possam ser extraídos dados reais da situação em Portugal e assim se encontrem, em tempo útil, planos de mitigação que trarão a mudança tao esperada por toda a sociedade.
PP: Hoje fala-se muito de networking como estratégia para estar em determinados fóruns, ao lado de pessoas influentes e, assim, chegar a lugares de decisão. Não lhe parece que o networking pelo networking vale muito pouco?
Concordo. Devemos tornar o networking uma ferramenta de gestão diária e não encarada como momentos desligados de troca de cartões de visita. É importante encararmos o networking como oportunidade de aprendizagem e partilha de conhecimentos, dando a conhecer o nosso valor, mas em simultâneo enriquecer-nos com o contributo de todos.
PP: Se olharmos para a História, percebemos que mesmo as reivindicações mais profundas, aclamadas na Grécia Antiga, nas revoluções liberais ou na Declaração Universal dos Direitos Humanos, não resolveram a igualdade. Por isso surge uma inequívoca necessidade de enraizar mecanismos e fórmulas de compensação da discriminação, como as quotas. Qual é a sua visão?
Devemos olhar aos dados disponíveis para falar deste tema. Foi publicado recentemente o livro branco do equilíbrio entre mulheres e homens nos órgãos de gestão das empresas, e é inequívoco que os países europeus com maior presença feminina nos boards são os que implementaram iniciativas de cariz mandatário ou voluntário, o que reforça a necessidade das quotas como acelerador de uma prática que já devia ser uma realidade, e que, esperamos, não ser necessária para as próximas gerações. O mérito em várias fases da carreira, como não é medido objetivamente, torna-se subjetivo, o que dá margem para que tenhamos uma desigualdade desmerecida, que tem de ser contrariada por medidas concretas.
PP: O tema da igualdade vai muito além das questões de género. A igualdade é, aliás, um dos ideais sociais mais antigos, dos que mais debate tem suscitado e eminentemente cultural. O conceituado autor francês Alain Touraine diz-nos que os grandes desafios do século XXI são culturais, assentes em reivindicações culturais. A cultura, de resto, vem colocar no “sítio certo” os fatores da desigualdade que hoje continuam a assolar as sociedades, mesmo as mais desenvolvidas. Como olha para o papel da cultura?
A diversidade de género, de idade, de formação, de pensamento, é crítica para acompanhar o espírito criativo que nos levará ao sucesso, que é medido de formas diferentes, dependendo da área económica e social. A escolaridade continua a ser o melhor elevador social, que deverá ser acompanhado por ter mundo e, assim, colocar todos num patamar inclusivo para tomar decisões. Somos cada vez mais globais, como se de um caldeirão de conhecimento, de realidades, de experiências, de desafios, se tratasse. A igualdade de oportunidades só existirá se houver equilíbrio em todas as dimensões da nossa vida.
PP: Na agenda exigente, fez questão de incluir a sua participação voluntária na Comunidade Vida e Paz. É mais uma missão?
De volta ao propósito, ter sido voluntária durante 14 anos da Comunidade Vida e Paz, tentando levar esperança e alegria às pessoas em situação de sem abrigo, fez todo o sentido, contribuindo para que pudessem mudar de rumo ou, simplesmente, ser aconchegados pelas palavras e os atos, em momentos e dias difíceis. Foram circunstâncias muito compensadoras emocionalmente, pois conseguimos acompanhar os pequenos e grandes sucessos dos mais vulneráveis, dando tão pouco de nós. Levo essa experiência para a vida, com memórias muito felizes de um grupo que sai para as ruas de Lisboa apenas com o propósito maior de ajudar o próximo em dificuldades. Tudo o que é feito de coração e que cumpre o nosso propósito traz-nos alegria e felicidade. E que mais podemos ambicionar na vida?
PP: Sei que a família tem para si um papel preponderante, atuando como o lugar onde verdadeiramente se encontra. Se eu tivesse aqui os seus filhos e lhes pudesse perguntar como olham para a mãe, o que gostaria que eles me dissessem?
Que se orgulham dos valores que defendo e que lhes transmiti.
Créditos de imagem: Isabel Nolasco
Esta entrevista é parte do livro “As perguntas que somos”, uma compilação de 34 conversas, que a partir da pergunta, mostra os olhares de personalidades desassossegadas, inquietantes, com histórias de vida, trajetos profissionais e domínio de saberes diversificados e relevantes. O projeto inicial partiu no Entre | Vistas, plataforma digital de comunicação cultural fundada por Paula Perfeito, em novembro de 2014.
Uma seleção de oito conversas será publicada, todas as sextas-feiras, até ao dia 5 de maio.
Saiba mais sobre “As perguntas que somos” aqui.