Num mundo volátil, todas as nações enfrentam desafios geopolíticos únicos. Grandes potências como a União Europeia e os EUA são o centro das análises políticas, mas estados insulares como Cabo Verde não têm tido tanta relevância nessa conversa. Como pode Cabo Verde reforçar a sua resiliência e relevância no cenário internacional? Que apostas se escondem na sua estabilidade democrática e parcerias multilaterais?
Helena Ferro de Gouveia, Analista de Assuntos Internacionais na CNN Portugal, faz essa análise e destaca a importância de uma liderança estratégica num mundo marcado pela volatilidade. Reforça, precisamente, que «a única certeza que temos é que vivemos num mundo de incertezas».
A comentadora levou esta reflexão ao palco da Leadership Summit Cabo Verde, no dia 23 de maio, na Cidade da Praia.
Uma viagem pelo passado para compreender o presente
Helena Ferro de Gouveia propôs uma análise retrospetiva, convidando a audiência a «viajar de comboio virados para trás», lançando outro olhar sobre a ordem mundial. Partindo de 1945, após a Segunda Guerra Mundial, descreveu um mundo bipolar, com duas potências – Estados Unidos e União Soviética – e um Tratado de Tordesilhas que dividia o globo entre capitalismo e comunismo, democracias liberais e autocracias. Este equilíbrio incluía um terceiro polo: os países não-alinhados, formados após processos de descolonização.
Com a queda do Muro de Berlim em 1989, o mundo entrou num momento unipolar, liderado pelos Estados Unidos, uma hegemonia aceite confortavelmente pela Europa, que se beneficiou economicamente sem preocupações com defesa. Contudo, esta unipolaridade começou a ser contestada.
Helena recordou eventos marcantes, como os ataques de 11 de setembro de 2001, que abalaram a invulnerabilidade norte-americana, seguidos pelas guerras no Afeganistão e no Iraque, que geraram controvérsia internacional. A crise financeira de 2008 e o discurso de Vladimir Putin em 2007, na Cimeira de Segurança de Munique, onde afirmou que «a ordem americana não nos interessa e não serve à Rússia», marcaram o início de uma erosão da liderança norte-americana. «Estamos numa terceira ordem, em que não sabemos muito bem se vamos ter um mundo bipolar, apolar ou multipolar», explica.
Uma nova ordem mundial: polaridade complexa
A oradora apontou que o mundo atual caminha para uma «polaridade complexa e multinível», com os Estados Unidos ainda como potência dominante, mas desafiados pela China, que deixou de ser apenas a «fábrica do mundo» para competir em tecnologia de ponta, na indústria automóvel e militar, por exemplo. Esta competição intensifica-se com tarifas comerciais, como as anunciadas por Donald Trump contra a Europa, e questiona alianças tradicionais, como a NATO, e instituições multilaterais.
Ferro de Gouveia identificou três grandes blocos emergentes: um Ocidente alargado (EUA, Europa, Japão, entre outros), um bloco liderado pela China, com a Rússia como parceiro menor, e o Sul Global, composto por países não-alinhados, como Brasil, Índia e África do Sul, que exercem influência regional sem se comprometerem totalmente com nenhum lado.
«Existe uma polaridade complexa, mas temos também um desafio à hegemonia norte-americana colocada por um conjunto de países que são potências regionais», acrescentou.
Desafios e oportunidades para Cabo Verde
Para Cabo Verde, a analista destacou os riscos geopolíticos globais, como o protecionismo comercial, a competição pela liderança em inteligência artificial e os ciberataques, que afetam desde instituições bancárias a infraestruturas críticas. A guerra na Ucrânia, com impactos na inflação e nas cadeias de distribuição, também toca estados insulares como Cabo Verde, que dependem de importações.
No entanto, a oradora sublinhou as vantagens estratégicas do arquipélago. A sua posição geográfica, entre Europa, África e Américas, é uma «vantagem competitiva». Cabo Verde destaca-se pelo multilateralismo, mantendo parcerias com a NATO, a União Europeia e os Estados Unidos, além de uma governação democrática que o torna um exemplo em África. Enfatizou ainda que «o saber tirar partido desta triangulação» pode impulsionar o desenvolvimento do país.
«Apesar de vivermos um momento de desglobalização, uma das tendências da nova ordem mundial é um entrelaçamento das economias», refere.
A Importância da Liderança Estratégica
Num mundo de «hiperconexão», onde tudo é «rápido, fugaz, superficial», Helena Ferro de Gouveia defendeu que os líderes devem ir «para além da espuma dos dias» e adotar uma visão macro. Propôs a prática de cenarização para antecipar tendências e planear estrategicamente, mesmo sem uma «bola de cristal». Para a analista, a liderança exige compreender as dinâmicas globais, como o crescimento demográfico e os recursos naturais de África, que contrastam com a falta de democracia e governação eficaz em algumas regiões.
Concluiu reforçando que a liderança estratégica é essencial para navegar as incertezas de uma ordem mundial em transformação, onde riscos como cibersegurança, terrorismo e desglobalização coexistem com oportunidades, especialmente para países como Cabo Verde, que podem capitalizar a sua posição e governação para se afirmarem globalmente.
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