O ato de andar sem destino pode parecer algo frívolo nos dias que correm: há horários para cumprir, sítios para estar e estímulos constantes que capturam a nossa atenção.
Rémy Oudghiri é natural de Casablanca, em Marrocos, onde descobriu o prazer por caminhadas solitárias e sem destino na sua juventude. Os seus passos levaram-no a Paris, onde vive e continua a caminhar sem destino. Escreveu um livro inteiramente dedicado ao assunto, onde procurou errantes como ele e deu por si a encontrar uma comunidade invisível que partilha a mesma paixão, pelas mais diversas razões.
O autor de ‘A Sociedade Muito Secreta dos Caminhantes Solitários’ e outras obras é também sociólogo e Diretor Geral Adjunto da Sociovision, e tem-se dedicado a estudar movimentos sociais, culturais e tendências de consumo na sociedade contemporânea. Defende que deambular pode mesmo ser um ato de rebeldia contra uma sociedade cada vez mais frenética e obcecada pela produtividade.
À Líder, contou as suas visões sobre o poder de caminhar sem destino, o que nos leva a fazê-lo e porque, por vezes, é importante (quiçá necessário) perder-se.
No seu livro, dá ênfase ao ato de caminhar sem objetivo ou destino. Como é que o ato de nos ‘perdermos’ fisicamente desafia a nossa cultura centrada na produtividade?
Não há nada mais contrário ao espírito da nossa época do que caminhar sem rumo. A nossa época é dominada pelo desejo de controlar, otimizar e planear tudo. Hoje em dia, se quisermos ver uma exposição ou viajar, temos muitas vezes de fazer preparativos com bastante antecedência, reservar um horário, planear todos os pormenores, e temos aplicações muito bem concebidas para o fazer. Mas perde-se algo precioso: torna-se impossível deixar-se guiar pela inspiração ou pelo que se quer no momento. Não há espaço para o inesperado.
Andar sem rumo, deste ponto de vista, é um ato de resistência, aquilo a que chamo uma “revolta calma”. Na era da inteligência artificial e da ascensão dos algoritmos, a deambulação é uma forma de reclamar um espaço de liberdade.
No meu livro, mostro que perdermo-nos é uma forma de nos encontrarmos. De facto, ao tomarmos um caminho ao acaso, desviamo-nos e rompemos com as convenções sociais. Escapamos ao programa que gostaríamos de seguir enquanto consumidores. Ao andarmos sem rumo, deixamos que o nosso verdadeiro eu se exprima. Vamos para onde os nossos desejos nos levam. Sem GPS, sem guia turístico, somos realmente livres e descobrimos coisas que realmente nos agradam. Pessoalmente, nunca levo um guia ou um mapa quando vou viajar.
A aventura e a poesia estão mesmo ao virar da esquina, nunca num mapa.
O que podemos descobrir sobre nós próprios ao caminhar sozinhos?
Descobrimos a parte sensível da nossa personalidade. Caminhar liberta uma energia muito especial, que combina corpo e mente. Pouco a pouco, encontramos um ritmo que nos faz sentir bem. Então, a imaginação pode exprimir-se.
Jean-Jacques Rousseau escreveu belas páginas sobre este assunto. Deixamo-nos levar pelo movimento, viramos à esquerda ou à direita, vamos de acordo com a nossa inspiração. À medida que avançamos, inventamos um caminho e inventamo-nos a nós próprios ao longo do percurso. Caminhar sem rumo é uma forma de nos preservarmos num Mundo cada vez mais enquadrado. Caminhar é uma forma de descobrir as nossas emoções, o nosso lado sensível, a parte que está maioritariamente oculta pelas nossas muitas ocupações sociais.
É importante caminhar sozinho?
Para mim, sim, faço-o com muita regularidade. As pessoas que entrevistei para o meu livro fazem-no por razões diferentes: pode ser para descobrir os pormenores poéticos ou estéticos de certos lugares, para se sintonizar com a paisagem, escapar à vida quotidiana ou comungar com o Mundo. As razões são muitas. O que liga todas estas motivações é o desejo de estar presente no Mundo, de sentir que existimos, de sentir o ambiente em que evoluímos. Deste ponto de vista, caminhar sozinho é uma atividade vital. É uma forma de nos ligarmos ao Mundo e de nos sentirmos vivos.
Muitas peregrinações, como o Caminho de Santiago, têm este poder espiritual e transformador, experimentado por muitos caminhantes. Que poder está oculto na caminhada?
Caminhar é muito simples. Saímos de casa e, ao fechar a porta, sentimos uma grande sensação de liberdade. Não se está dependente de uma bicicleta, carro, comboio ou avião: sente-se livre. Esta liberdade dá-nos uma intensa sensação de bem-estar. E, acima de tudo, caminhar liga-nos ao Mundo que nos rodeia.
Os peregrinos caminham para se ligarem a Deus, à natureza, ao seu eu interior. Os peregrinos de Santiago de Compostela acrescentam a isto o prazer do encontro e da partilha. Partem sozinhos, mas encontram outros que os ajudam a ver a sua vida com mais clareza.
Ao longo dos milénios, os seres humanos evoluíram para se fixarem e deixar de ser nómadas. Teremos perdido uma parte importante de nós, em termos biológicos?
Penso que, acima de tudo, perdemos uma dimensão espiritual. Ao nos tornarmos sedentários, fechámo-nos em nós próprios e perdemos a capacidade de nos ligarmos simplesmente ao Mundo. Hoje, estamos colados aos nossos ecrãs e perdemos uma forma simples de nos ligarmos ao que nos rodeia. Os ecrãs podem abrir-nos para o Mundo, mas também nos fecham, desligando-nos das sensações do nosso corpo. Andar a pé permite-nos recuperar o controlo do corpo e a sua capacidade de sentir e pressentir.
Num Mundo dominado pelo ruído e pela conectividade constante, que papel desempenha o silêncio na prática de caminhar sem destino?
Um passeio nunca é verdadeiramente silencioso. Mesmo ao amanhecer, que é a altura em que mais caminho, há o murmúrio dos pássaros, o som dos primeiros seres invisíveis a acordar, aquilo a que chamo as “vozes do amanhecer”. Mas, na maior parte das vezes, esses sons são alegres, os sons do nascimento do Mundo.
Faço frequentemente esta experiência: parto às cinco horas da manhã num silêncio que é gradualmente pontuado pelos rumores da madrugada. Mas às dez horas da manhã, a magia acabou. O barulho da cidade, dos carros, das pessoas com pressa, das pessoas irritadas, cobre tudo. É preciso parar e esperar pela próxima madrugada.
O silêncio é uma das condições para nos ligarmos ao nosso eu mais profundo. Temos de silenciar a sociedade e as suas ruminações incessantes para podermos escutar o nosso eu interior. Atualmente, muito poucas pessoas são capazes de tal desprendimento. Pelo contrário, os nossos contemporâneos evitam o silêncio porque este os assusta. É como se tivessem medo de mergulhar em si próprios. Contentam-se com interações superficiais na confusão de um lugar público.
A única maneira de viver autenticamente é criar momentos de silêncio.
De certa forma, andar sem rumo parece opor-se à sociedade estruturada e orientada para objetivos, tornando-se uma rebelião silenciosa. Como é que os líderes podem aplicar esta filosofia para promover a criatividade e a inovação?
Caminhar sem rumo é um ato profundamente individual. É possível andar aos pares ou aos trios, mas mais do que isso é muitas vezes difícil. Na caminhada sem rumo, não há objetivo. O percurso não é conhecido de antemão. É um exercício de exploração. Para as pessoas com horários muito preenchidos, é uma forma de redescobrir uma forma de liberdade e também uma forma de ser criativo e fora da caixa: experimentamos coisas que nunca tínhamos experimentado antes, vemos coisas que nunca tínhamos visto antes.
Aprende-se a ver realmente. É um método sem método. Há algo de profundamente surrealista em caminhar sem um objetivo, o que nos torna naturalmente inventivos. No meu livro, falo de uma caminhante que conta histórias a si própria enquanto caminha. O movimento adormece-a e inspira-a a escrever ficções num caderno. As obras da deambulação.