O futuro da Humanidade está a moldar-se por batalhas constantes geoestratégicas para controlar a tecnologia mais crucial no Mundo. Os minúsculos chips de silício são para o século XXI o que o petróleo foi para o século XX: o recurso material que alimenta a economia moderna. E a razão é simples: o Mundo não consegue funcionar sem estes chips.
Praticamente tudo, desde o telemóvel ao micro-ondas, do computador ao frigorífico, do automóvel à bolsa de valores e até os mísseis, funcionam com microchips.
E, tal como nos anos 70 com o petróleo, este escasso recurso é dominado por poucos e trata-se de uma questão geopolítica. Hoje, o poder militar, económico e geopolítico no cenário global depende dos microchips. Os líderes estão a acordar para o crescente risco de guerra. Mas Chris Miller já tinha despertado, por isso dedicou os últimos cinco anos a estudar esta indústria e em julho editou A Guerra dos Chips, considerado o livro do ano pelo Financial Times.
Em entrevista, à Líder, o também professor de História Internacional na Tufts University’s Fletcher School explica-nos tudo o que nos está a escapar, se estamos na iminência de uma guerra fria sino-americana, se a globalização está a assumir novos contornos, se o “comércio livre” está minado, se o mercado negro e o contrabando vão renascer e, afinal, o que poderá acontecer nesta Era do Silício.
A Guerra dos Chips é um livro tido como essencial para compreendermos o Mundo moderno. Pode explicar aos nossos leitores o que está a acontecer?
Hoje, toda a economia mundial depende da base de milhões de chips de silício. Qualquer pessoa depende de milhares de chips no seu dia-a-dia ao longo da sua vida – nos seus telefones, computadores, frigoríficos, automóveis e nos centros de dados que armazenam e processam a maior parte dos seus dados. As nossas economias simplesmente não conseguem funcionar sem chips. Portanto, o facto de a produção de chips depender de um pequeno número de empresas insubstituíveis é motivo de preocupação crescente.
Também por isso assume que a Era Atómica rivaliza (em trama e significado) com a Era do Silício?
Os chips são essenciais para o equilíbrio de poder no cenário mundial. O sucesso das forças armadas depende do acesso aos chips e às capacidades de computação, deteção e comunicação que eles permitem. O futuro do poder militar dependerá da aplicação da IA aos sistemas militares, o que exigirá chips ainda mais avançados.
Toda a economia moderna depende criticamente dos chips. Por isso os minúsculos chips de silício são hoje a tecnologia mais crucial do Mundo.
E a sua produção é controlada por apenas um punhado de empresas. A Taiwan Semiconductor Manufacturing Company produz 90% dos chips de processador mais avançados do Mundo. O Mundo simplesmente não pode funcionar sem estes chips.
Mas estamos a falar de uma indústria gigantesca, que envolve, além de Taiwan, investigadores, titãs da tecnologia (alguns que construíram Silicon Valley), até aos oficiais do Pentágono que os usaram para revolucionar o poder militar, às cadeias de fornecimento, incluindo ainda os lobistas. Quem são os principais atores desta guerra?
Além de Taiwan, os grandes intervenientes são os EUA, o Japão, os Países Baixos, a Coreia e a China. Os EUA fazem o design da maioria dos chips de alto valor. Empresas como a NVIDIA, que fabrica os chips de IA mais avançados, têm capacidades únicas, embora a maior parte da sua produção seja outsourced para Taiwan. O Japão produz produtos químicos ultrapurificados que são essenciais para o processo de fabricação de chips. Os Países Baixos detêm o monopólio absoluto das mais avançadas máquinas de litografia, um tipo de ferramenta ultracomplexa fundamental para o processo de fabricação de chips. A Coreia fabrica a maioria dos chips de memória mais avançados do Mundo.
A China não faz nada de inovador no processo de fabricação, mas a maior parte dos chips é enviada para a China para montagem em smartphones, computadores e outros dispositivos eletrónicos.
Como é que chegámos a esta situação, em que a fábrica de chips mais importantes do Mundo está em Taiwan?
A fabricação de chips é um negócio brutalmente caro. Cada nova instalação de ponta custa 20 mil milhões de dólares americanos ou mais. São as fábricas mais caras da história da Humanidade.
Portanto, há apenas um pequeno número de empresas capazes de suportar as avultadas despesas de capital envolvidas. A Taiwan Semiconductor Manufacturing Company é a maior fabricante de chips e cansou-se de fabricar da forma mais eficiente possível, concentrando as suas operações de produção em Taiwan.
Quanto vale esta indústria?
Meio trilião de dólares por ano em receitas agora, mas pode ser uma indústria de triliões de dólares no final da década.
E se se perder o acesso aos chips de Taiwan por meio de uma guerra ou bloqueio, qual seria o impacto global?
Enfrentaríamos a pior rutura na produção industrial global desde a Grande Depressão. Não são apenas smartphones e PCs que exigem chips. São máquinas de lavar louça, automóveis, aviões, equipamentos de fabricação – quase tudo com um botão on-off tem pelo menos um, e muitas vezes centenas de semicondutores no seu interior. Uma parte substancial destes chips – não apenas os mais avançados, mas também os chips produzidos com tecnologias maduras – é fabricada em Taiwan. A economia mundial enfrentaria uma rutura de triliões de dólares sem os chips fabricados em Taiwan.
A Lei Chips Act de Biden é uma resposta a essa ameaça?
Sim, é um esforço para reforçar a indústria de chips dos EUA face a esta concentração e aos vastos programas de subsídios da própria China. Hoje, a China hoje está atrás da vanguarda em chips, mas está a gastar grandes somas – dezenas de milhares de milhões de dólares por ano – a tentar recuperar o atraso. A Lei dos Chips nos EUA está a tentar ajudar a reforçar a indústria dos EUA face à concorrência chinesa fortemente subsidiada.
A situação neste momento é perigosa? Nenhum país é autos – suficiente, mas terá capacidade de se recuperar sozinho?
Os EUA, o Japão e os Países Baixos já impuseram restrições à transferência de tecnologia para a China. Não é do interesse do Ocidente se a China recuperar o atraso em termos de chips. As ramificações – militares, económicas, estratégicas – seriam catastróficas para os interesses ocidentais.
Tudo isto pode desencadear a criação de um mercado negro de chips?
Sim, até certo ponto. A China não consegue contrabandear todos os chips de que necessita. Para treinar sistemas de IA não precisa apenas de alguns chips, mas de vastos Centros de Dados cheios de chips de última geração. Eles são grandes demais para serem escondidos.
Está a globalização a definhar, bem como o comércio livre?
Não, mas a globalização está a mudar. O “comércio livre” já foi minado pelos programas de subsídios da China, como o Made in China 2025. Não havia nada de livre ou igual nisso. Durante uma década, o Ocidente permitiu que a China subsidiasse a sua indústria enquanto os países ocidentais eram desindustrializados. Agora, os EUA e o Japão responderam com políticas para reforçar as suas indústrias face aos subsídios da China. A Europa ainda está a tentar encontrar a sua estratégia.
Os chips estão a tornar mais provável a possibilidade de conflito entre a China e os EUA?
Não colocaria o assunto dessa forma. A principal razão pela qual o risco de guerra é hoje maior do que anteriormente é que as Forças Armadas da China são mais fortes. No passado, a China sabia que se instigasse uma guerra com os EUA atacando Taiwan, perderia. Após duas décadas de desenvolvimento militar, a China é muito mais poderosa. Se atacasse Taiwan hoje, ninguém sabe o que aconteceria. Essa incerteza cria perigo.
E se houvesse uma guerra quem venceria?
Ninguém sabe.
Quem são os heróis desta história?
Os heróis são pessoas que impulsionam a tecnologia. Pessoas como Morris Chang, o Fundador da TSMC, a empresa de cujos chips o Mundo inteiro depende.
E os maus da fita? Como é que os devemos travar?
Os nossos adversários também estão a tentar aproveitar a tecnologia avançada, construindo sistemas com menos salvaguardas e mais riscos do que o Ocidente. Não podemos ser ingénuos quanto à forma como os adversários utilizam tecnologia avançada.
Geoffrey Hinton, pioneiro no campo da inteligência artificial (IA), deixou o seu cargo na Google. Em causa estão as suas preocupações sobre os riscos da tecnologia. Deve-se parar a escalada da IA?
Não. A IA é como qualquer outra ferramenta. Será usada para muitos propósitos positivos e muitos propósitos negativos. Os esforços para detê-la falharão. Certamente podemos restringir as empresas ocidentais com regulamentação. Mas outros países não vão parar.
Até quando é que os chips vão continuar a redefinir o Mundo e a determinar a prosperidade económica e geopolítica e a superioridade militar dos países?
Até tão longe quanto conseguirmos ver o futuro. Enquanto a indústria estiver tão concentrada e a sua taxa de avanço for tão rápida, o acesso a chips de última geração definirá o equilíbrio do poder.
Para finalizar, o facto de os chips serem tão valiosos levanta uma hipótese consistente, e cada vez mais dominante, de que a tecnologia vai alterar o Mundo de um modo ainda mais decisivo do que na última década. O que lhe parece que vai acontecer?
A tecnologia certamente não vai desacelerar. Em 2033, teremos chips 10 vezes mais potentes que os chips atuais. Seremos capazes de processar 10 vezes mais dados do que hoje. Como resultado, os sistemas de Inteligência Artificial tornar-se-ão muito mais capazes. A Guerra dos Chips está apenas na sua fase inicial.
Este artigo foi publicado na edição de outono da revista Líder, que tem como tema Reborn from Chaos: The Path for a New Renaissance. Subscreva a Líder aqui.