Para ser íntegro, tenho de possuir também um lado negro.
– Carl Jung
— O que é que se passa contigo? — pergunta Steve Jobs a Sarah, a sua sobrinha de 12 anos, durante um jantar de família em Palo Alto. — Nem sabes falar. Não sabes comer. Estás a comer merda. — E continua: — Já alguma vez pensaste em como é horrível, a tua voz? Por favor, para de falar com essa voz horrível.
No seu livro Small Fry: A Memoir, a filha mais velha de Steve Jobs, Lisa Brennan‑Jobs, conta como o pai humilhou Sarah por não estar à altura das suas expectativas implícitas, deixando‑a a soluçar em frente ao hambúrguer meio comido. Como golpe final, Jobs termina com: — Devias mesmo pensar no que se passa contigo e tentar resolver isso.
Num artigo da revista The New Yorker de 2011, Malcolm Gladwell continua o retrato:
Ele grita com os subordinados. (…) Senta‑se num restaurante e manda a comida para trás três vezes. Chega à suíte do hotel em Nova Iorque para dar entrevistas à imprensa e decide, às dez da noite, que o piano precisa de ser mudado de lugar, que os morangos não servem e que as flores não são as certas: queria jarros (quando a sua assistente de relações públicas volta à meia‑noite com as flores certas, diz‑lhe que o fato que ela traz vestido é «nojento»).
Gladwell conclui: «A nossa expectativa natural é que Jobs saia mais sábio e carinhoso da sua viagem tumultuosa. Isso nunca acontece. No hospital, no fim da vida, percorre 67 enfermeiros até encontrar três de que gosta.» Este livro trata sobretudo do perfecionismo auto‑orientado com os seus padrões irrealistas, sobrevalorização e motivação ríspida do Crítico Interior. No entanto, este capítulo aborda os outros dois tipos de Críticos Exteriores: o perfecionismo orientado para os outros, que surge quando somos duros com os outros, e o perfecionismo socialmente prescrito, que surge quando esperamos que os outros sejam duros connosco.
Vamos começar com sermos duros com os outros. Os doutores Gordon Flett e Paul Hewitt, que criaram a teoria dos três tipos de perfecionismo, defendem que o perfecionismo orientado para os outros é motivado pela convicção de que é importante que as outras pessoas (normalmente pessoas próximas de nós, como um parceiro, filhos ou subordinados diretos) nunca errem. Esperamos que estejam à altura das nossas maiores expectativas. E quando nos desiludem, criticamo‑los, tanto silenciosamente como em voz alta. Steve Jobs pode ser o exemplo supremo de perfecionismo orientado para os outros, mas até uma pessoa das menos exigentes pode manter‑se muito atenta a essas microempresas da lista Fortune 500 que são a nossa família, os filhos ou os empregados.
(…) O investigador do perfecionismo Dr. Joachim Stoeber da Universidade de Kent salienta que o perfecionismo orientado para os outros é a única forma de perfecionismo que não está enraizada na consciência. Chama‑lhe um tipo «negro» de perfecionismo, porque é centrado numa «autoestima muito elevada, mas pouca consideração pelos outros».
Este raciocínio traz‑nos a uma palavra feia: narcisismo. O narcisismo é um tema controverso na psicologia — um traço de vilão da Disney. Porém, o narcisismo existe num contínuo. O narcisismo saudável motiva a autopreservação, o direito à justiça e aos direitos humanos, a proteção da nossa família e propriedade, bem como conceitos mais vagos que defendo neste livro, como autoaceitação, autoestima e divertimento. No extremo menos saudável do contínuo estão os narcisistas desenfreados — prepotentes, humilhadores, pretensiosos mas frágeis, sem problemas em explorar‑nos se isso servir o seu interesse próprio.
Antecipar os críticos exteriores: o perfecionismo socialmente prescrito
«Essa merda esteve no lixo», recorda Bruno Mars sobre as versões iniciais de Uptown Funk, o seu megassucesso com Mark Ronson que esteve no topo da tabela Billboard Hot 100 durante 14 semanas (empatando com o segundo melhor resul‑ tado de sempre) e o lançou para o estrelato. «Passámos meses a fazer aquele refrão.» Enquanto fumava cigarros sucessivos no estúdio, a afinar variação após variação, preocupava‑se com as possíveis reações negativas: «Será que as pessoas vão sair da pista de dança porque eu disse uma estupidez sobre um dragão?»
Após o sucesso de Uptown Funk, a situação tornou‑se paralisante com o álbum seguinte, 24k Magic. «Vindo do maior sucesso da minha carreira, foi extremamente intimidante entrar aqui», revelou Mars em relação ao regresso ao estúdio. Duvidou de tudo. «Não sei se as pessoas vão gostar desta treta», disse. «Não sei se as rádios vão tocar isto.»
Josh Eells, jornalista da Rolling Stone, juntou‑se a Mars nos meses que antecederam o lançamento do disco. Mars disse‑lhe: «Neste momento, estamos no ponto em que damos em doidos. O meu engenheiro de som está a passar‑se; quer matar‑me.» Mars tocou a versão mais recente (à data, a vigésima) para Eells ouvir. Era bom, admitiu Mars, mas ainda havia algo na ponte da música que o incomodava: «Tenho de a abrir.» Ari Levine, um produtor galardoado com Grammys, comentou: «Nunca vi uma pessoa tão meticulosa, em tudo.»
Bem‑vindo ao mundo do perfecionismo socialmente prescrito. O perfecionismo auto‑orientado é interno — o nosso ímpeto vem do interior. Já o perfecionismo socialmente prescrito é externo — resulta de uma convicção de que os outros serão extremamente críticos se não cumprirmos as suas expectativas elevadíssimas. Bruno Mars explica a sua intensidade por ter crescido a cantar na banda da família em Honolulu. No mundo do espetáculo, internalizou os padrões elevados da falecida mãe: «Via as pessoas a ficarem apaixonadas por ela», conta. «Ela tinha esse dom.» Atualmente, segundo Mars: «Cada vez que cometo um erro em palco, oiço‑a. “Não estás no tom!”, “Falhaste aquele movimento!”, “Diz ao teu irmão para rapar aquele bigode!” Está lá tudo.»
(…) Não estou a criticar a mãe do Bruno Mars. O perfecionismo socialmente prescrito raramente tem apenas uma única pessoa por detrás. É mais uma força cultural, como a analogia de perguntar a um peixe «Como está a água?» e o peixe responder «Qual água?» Nem sequer nos apercebemos de que estamos a nadar nela. No entanto, enquanto seres humanos, reagimos ao contexto em que somos inseridos. Por isso, quando somos inseridos num contexto de pós‑pandemia no século xxi, com forças culturais implacáveis (capitalismo, opressão sistémica, consumismo), faz sentido reagirmos sentindo que todos estão à espera para nos cair em cima quando tropeçarmos.
Como explica o Dr. Thomas Curran: «O perfecionismo é a psicologia que define um sistema económico decidido a almejar acima dos limites humanos.» Além disso, o perfecionismo socialmente prescrito é, segundo os investigadores, «de motivação interpessoal», querendo dizer que estamos sedentos de aceitação dos outros, ou pelo menos tentamos evitar a rejeição e desaprovação. É uma reação legítima à imposição de expectativas exigentes por um pai, parceiro ou outra pessoa importante da nossa vida, bem como ao facto de assimilarmos pressupostos sobre as nossas capacidades, vindos da cultura geral em que flutuamos como amostras conservadas num frasco. Enquanto indivíduos inseridos nesta cultura, há sempre uma pressão para sermos o melhor que conseguirmos.
(…) No entanto, as nossas próprias fraquezas, erros e desacertos enquanto seres humanos impedem‑nos de avançar. Os investigadores chamam à distância entre os padrões que vemos e a realidade de como a vida se desenrola discrepância perfecionista. Assim, tentamos transpor essa distância a todo o custo.
O medo de desiludirmos os outros conduz a estratégias de compensação — um processo «corretor» que trataremos mais a fundo no capítulo 15, chamado autoapresentação perfecionista (e o seu primo angustiado, auto‑ocultação defensiva) — através das quais tentamos parecer, soar e agir como se estivesse tudo sob controlo. De facto, cometer um erro em público é particularmente penoso numa situação de perfecionismo socialmente prescrito. Ocultamos as nossas vulnerabilidades e fraquezas. Não falamos sobre isso.
Porém, a estratégia de fingirmos por defesa é desgastante. É o caminho mais rápido para resultados previsíveis: depressão, distúrbios alimentares, procrastinação e conflitos interpessoais ou isolamento, que nos fazem sentir ainda pior. Todos vemos os aspetos em que não somos o nosso melhor, e sentimos que estamos a desiludir toda a gente, incluindo a nós mesmos.
Este artigo consiste num excerto adaptado do livro Como ser bom o suficiente (Nascente, 2025), de Ellen Hendriksen, publicado com o consentimento da autora.