As doenças das organizações e das sociedades resultam fortemente das ações das lideranças. Mas a cumplicidade dos liderados, reguladores, supervisores e observadores é igualmente crucial. A história, inclusivamente a das organizações, está repleta de tragédias e desvergonhas que foram alimentadas pela participação ativa, o conluio, o silêncio ou a passividade de várias pessoas e entidades.
Um ex-membro do conselho de administração do BES assumiu: “Em seis anos nunca abri a boca, entrava mudo e saía calado. Bem como todos os restantes administradores”. Afirmou que “Não havia perguntas não porque não pudesse haver, mas porque jamais alguém as fez”. E acrescentou que os administradores não executivos eram “verdadeiros verbos de encher”, um “detalhe, um acessório no toilete de uma senhora”. Recebia cerca de 2400 euros líquidos por reunião do conselho de administração, mas não lhe ocorreu abrir a boca ou bater com a porta. Não assumiu qualquer responsabilidade pelo sucedido no BES e sacudiu-a para cima do Banco de Portugal, a CMVM e as empresas de auditoria.
O escândalo Dieselgate, resultante de software fraudulento destinado a iludir as emissões poluentes dos automóveis Volkswagen, foi facilitado pela cumplicidade de várias pessoas, órgãos de supervisão, entidades reguladoras e mesmo sindicatos. A saga rocambolesca de Carlos Ghosn deve-se, em grande medida, à soberba que o mesmo desenvolveu ao leme da Nissan. Mas houve cúmplices. Yuichi Ishino, que trabalhou no departamento financeiro da empresa entre 2002 e 2005, afirmou: “Ninguém se atrevia a dizer nada que contrariasse as suas opiniões”. A lista de escândalos emergentes destes e outros tipos de cumplicidade é longa.
A coragem para confrontar a “maldade” é, pois, um dever moral – embora tenha custos, por vezes enormes. Naturalmente, este dever não pode ser imputado a quem vive no limiar da sobrevivência e não se pode dar ao luxo de contestar os grandes e os pequenos poderes. Mas, pelo menos, temos o dever de respeitar, felicitar e apoiar quem tem a coragem de prescindir do conforto e da conveniência pessoal para, abrindo o bico, contestar a desvergonha. Foi sobretudo a coragem de Tyler Schultz que permitiu identificar a fraude que Elizabeth Holmes e seus cúmplices praticavam na Theranos. Holmes, que chegou a ser multimilionária e celebrizada como a “próxima Steve Jobs”, cumpre agora uma longa pena de prisão.
Não subestimo o papel ameaçador que algumas lideranças exercem para impedir o exercício do escrutínio pelos liderados e outros observadores. Sei – todos sabemos – que algumas lideranças iluminadas, narcisistas, soberbas e incapazes de assumir as suas falhas rotulam a contestação e a resistência como inaptidão, défice de mérito, ou mesmo desonestidade. Também não desvalorizo o direito que todos temos de fruir as “nossas vidas” sem o desconsolo resultante do enfrentamento dessas lideranças. E também reconheço que todos (diria mesmo “todos, todos, todos”), de modo mais ou menos consciente, mais ou mesmo passivo, somos ou fomos alguma vez cúmplices de decisões e ações perversas e perigosas.
O que pretendo, pois, é partilhar o que me vem à mente quando penso em liderança abusiva ou destrutiva: os crimes de liderança estão frequentemente associados a crimes de obediência. Alguns crimes empresariais são também alimentados por crimes de cumplicidade perpetrados por consultoras desejosas de “maximizar o valor para o acionista” e os bónus dos executivos. A tragédia das mortes associadas à crise dos opioides nos EUA, alimentada pela farmacêutica Purdue Pharma, foi facilitada pela cumplicidade interessada da McKinsey.
Max Bazerman, professor na Harvard Business School, escreveu recentemente um excelente livro sobre a cumplicidade, a forma como todos potenciamos as falhas éticas, e os modos de prevenir a maleita. Aí elenca as nove formas de cumplicidade discutidas por São Tomás de Aquino no século XIII: ordenando, aconselhando, consentindo, bajulando, fruindo, participando, silenciando, não prevenindo, e não denunciando. Decorridos mais de sete séculos, o elenco mantém-se atual. Entendo, pois, ser necessário que as escolas de negócios reforcem o ensino-aprendizagem dos clássicos e estimulem o pensamento crítico.