A América Latina e as Caraíbas são hoje das regiões mais urbanizadas do mundo. Cerca de 82% da população vive em cidades, um número que supera largamente a média global de 55%. A urbanização acelerou o crescimento económico e impulsionou o progresso social. Mas trouxe também novas desigualdades.
A pobreza, que antes era sobretudo rural, é agora maioritariamente urbana. Em 2000, 66% das pessoas em situação de pobreza viviam em cidades; em 2022, eram já 73%. A redução da pobreza monetária — que desceu para 26% nesse ano — não travou a mudança de geografia da privação.
Hoje, mais de 15% da população urbana vive em pobreza multidimensional, segundo dados da CEPAL e do PNUD. São famílias que, mesmo com algum rendimento, continuam sem acesso a habitação condigna, educação de qualidade, cuidados de saúde ou serviços básicos. A concentração urbana torna os números ainda mais graves: milhões de pessoas vivem em bairros clandestinos, sem água potável, sem saneamento seguro, presas a ciclos de exclusão que se perpetuam geração após geração.
Três países — Brasil, Venezuela e México — reúnem 59% das pessoas em pobreza extrema na região. São mais de 52 milhões de indivíduos a viver com menos de 3,65 dólares por dia. A urgência de respostas integradas nunca foi tão evidente.
A intersecção entre desigualdade urbana e vulnerabilidade climática
O crescimento desordenado das cidades, aliado ao impacto crescente das alterações climáticas, aprofundou a exclusão social. Muitos centros urbanos expandiram-se mais depressa do que a capacidade dos governos para planear, levando a uma ocupação massiva de zonas de risco: encostas, margens de rios, periferias expostas.
Nestes territórios frágeis, qualquer tempestade, qualquer inundação, torna-se catástrofe. As populações mais pobres, a viver em habitações precárias e sem rede de apoio, são sempre as mais afetadas. Estimativas recentes alertam: sem intervenção urgente, os choques climáticos poderão aumentar a pobreza extrema até 300% até 2030.
A crise climática não atinge todos por igual. Ela agrava desigualdades antigas. Secas, tempestades e degradação de solos forçam deslocações em massa, pressionando ainda mais bairros já saturados. Mulheres, que chefiam um quarto dos agregados urbanos nas Caraíbas e América Latina — a maior proporção do mundo — enfrentam obstáculos acrescidos: trabalho clandestino, responsabilidades de cuidado, menor acesso a proteção social. Em contextos de desastre, a vulnerabilidade agrava-se. A mobilidade é menor, o acesso a recursos é mais difícil, o risco de violência sobe.
Inovação urbana: caminhos possíveis
Apesar dos desafios, as cidades continuam a ser espaços de inovação e esperança. Em Medellín, na Colômbia, a estratégia de ‘urbanização social’ transformou zonas vulneráveis em bairros integrados: transportes públicos acessíveis, bibliotecas, zonas verdes e centros culturais fortaleceram comunidades e reduziram a violência.
Curitiba, Bogotá e Cidade do México apostaram em soluções de mobilidade sustentável, encurtando tempos de deslocação, melhorando a qualidade do ar e criando novas oportunidades económicas, sobretudo para os mais pobres.
Natureza também é resposta. Iniciativas de plantação de árvores, florestas urbanas e recuperação de zonas húmidas em cidades como Lima e Bogotá estão a mitigar riscos climáticos e a devolver qualidade de vida aos espaços públicos. Em Quito, o conceito de ‘laboratórios urbanos’ colocou universidades, comunidades e autarquias a desenhar em conjunto soluções locais. Pequenas obras, grandes impactos.
O que estas experiências mostram é claro: a transformação urbana não depende apenas de grandes investimentos. Precisa de inovação, vontade política e, sobretudo, de colocar as pessoas no centro da decisão.
Dignidade e resiliência: a prioridade das próximas décadas
A luta contra a pobreza urbana e a vulnerabilidade climática exige políticas integradas e de longo prazo. Cidades mais justas e resilientes não se constroem por acaso: exigem planeamento focado na equidade, sustentabilidade ambiental e gestão do risco.
É essencial regulamentar o uso do solo, impedir construções em zonas de risco, garantir infraestruturas básicas — água, saneamento, transportes, energia eficiente — em áreas seguras e acessíveis. Investir em espaços públicos seguros, promover redes de proteção social robustas, criar sistemas de alerta e preparar as comunidades para reagir a desastres é igualmente crucial.
Financiar esta transformação implica criatividade: melhor cobrança fiscal local, incentivos ao investimento verde, acesso a mecanismos de financiamento misto. As políticas urbanas devem integrar objetivos sociais e ambientais, evitando abordagens fragmentadas. Planeamento com sensibilidade de género, uso de dados para decisões mais justas e processos participativos de governação serão essenciais.
Por fim, é necessário lembrar: infraestrutura é importante, mas não suficiente. A mudança verdadeira nasce também da consciência coletiva. Quando comunidades adotam comportamentos sustentáveis, reforçam laços sociais e participam na construção dos seus territórios, abrem caminho a cidades mais fortes, mais justas, mais humanas.
A pobreza urbana, na sua dimensão multidimensional, obriga a repensar tudo: mais do que medir rendimentos, trata-se de defender a dignidade, garantir oportunidades e construir ambientes onde todos possam viver em segurança, saúde e bem-estar.
À medida que a urbanização avança, abre-se uma janela histórica para reimaginar as nossas cidades como motores de desenvolvimento inclusivo e de baixo carbono. Não aproveitar essa oportunidade seria, mais do que um erro, uma traição às gerações futuras.