A diáspora cabo-verdiana está pronta para regressar, investir, inovar. Mas o país continua, em muitos casos, a recebê-la com burocracia, entraves legais e promessas que ficam por cumprir. O alerta foi dado durante a terceira edição da Leadership Summit Cabo Verde, realizada nos dias 22 e 23 de maio no TechParkCV, sob o lema ‘Liderança Estratégica: Confiança, Conexão e Transformação’.
Era para ser um painel sobre inovação e investimento da diáspora, mas depressa se tornou numa chamada de atenção. A nova geração da diáspora já não vive só de saudade. Vive de ciência, de código, de empresa na mala. Quer criar valor. Quer mudar o país. Mas bate num muro.
A palavra atravessou a conversa como um fio eléctrico. «Confiança.» Disseram-na em crioulo, em português, nas pausas entre intervenções, nas entrelinhas da frustração. Há um país que diz querer os seus filhos de volta — mas, por vezes, ainda os trata como estranhos. Um país que diz querer investimento — mas que, muitas vezes, o afasta.
Rosana Almeida, jornalista, comandou os destinos desta profunda e honesta conversa.
«Eu trago o meu computador, não mando remessas»
Any Keila Pereira é engenheira, empreendedora, filha da diáspora e uma das vozes mais lúcidas desta geração. Co-fundadora de uma startup africana de inteligência artificial, vive entre Portugal e Cabo Verde. E não tem paciência para grandes romantismos. «Eu nunca enviei remessas. Trago o meu computador e trabalho a partir daqui», disse, de forma crua e direta.
Na sua visão, Cabo Verde tem tudo para ser um hub tecnológico regional. «Tem talento. Tem estabilidade. Tem localização. Tem um povo extraordinário. Mas falta-lhe uma coisa: cumprir o que promete.»
Any Keila falou das inúmeras promessas feitas a jovens da diáspora: oportunidades, parcerias, incentivos. «Vêm com vontade de criar, de contribuir. Mas depois encontram bloqueios fiscais, legais, institucionais. E vão embora com um travo amargo. A confiança, uma vez quebrada, espalha-se como mancha de óleo.»
«Politização afasta-nos»
Do outro lado da mesa, Nelson Gregor não poupou palavras. Presidente da associação de empresários cabo-verdianos nos EUA, vive há décadas fora, mas nunca perdeu o país do mapa afetivo. Investiu, criou redes, tentou abrir caminhos. Mas o cansaço é evidente.
«Criámos a associação porque estávamos fartos de ver sempre os mesmos problemas. Toda a gente diz que quer a diáspora. Mas quando chegamos cá, há alguma desconfiança. E se não conhecermos as pessoas certas, não passamos da porta.»
Nelson Gregor denunciou a politização do investimento. «Tu tens uma ideia, queres montar uma empresa. Mas basta o teu advogado ter ligação ao MPD para seres logo catalogado. Isso mata a iniciativa. Estamos aqui para criar, não para entrar em jogos partidários.»
Encontrar soluções e mapear a diáspora
Num dos momentos mais intensos do painel sobre a diáspora, Any Keila Pereira colocou o dedo na ferida: «Não basta criticar. A diáspora passa a vida a rodear os problemas, a repetir diagnósticos. O que se quer hoje é solução.»
E propôs uma. Simples, direta. Uma plataforma viva, onde os cabo-verdianos fora do país possam mapear-se a si próprios. «Fazia um site estático… mapear por exemplo diáspora da Europa que está na tecnologia, diáspora dos Estados Unidos que está na tecnologia, mapear diáspora que está na medicina… Cada um coloca o seu nome, o que faz, o país onde vive — assim as coisas acontecem de forma orgânica.»
Ao lado dela, Nelson Gregor alinhou a proposta. Mas foi mais fundo: «É preciso menos politização. A diáspora não quer ficar presa a ciclos eleitorais. Nós queremos estratégias que durem. Que não mudem consoante o partido que está no poder.»
Cabo Verde está preparado para acolher esta nova diáspora?
Nelson Gregor, com experiência no terreno, não tem dúvidas: «Deixem as associações serem porta de entrada. Não nos tratem como adereços em cerimónias. Deem-nos autonomia. Nós somos um milhão e meio ou mais lá fora. Temos know-how, capital, vontade.»
A nova diáspora não é turista. Não é espectadora. É agente. São jovens formados, mulheres e homens com carreira feita, empresas no terreno, ideias sólidas. E um profundo sentido de pertença. Mas falta-lhes um país que confie neles como eles confiam no país.
A pergunta ficou no ar, como nó na garganta: Cabo Verde está preparado para acolher esta nova diáspora? Ou vai continuar a deixá-la à porta?