Em pleno século XXI, o acesso a comida, habitação, cuidados médicos e outros bens essenciais continua a ser sistematicamente negado a pessoas LGBTI em várias partes da Europa. Casos documentados em países como Andorra, Arménia, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Croácia, Chipre e Itália revelam um padrão de exclusão institucionalizada. Perante a inércia ou hostilidade dos governos, são as organizações da sociedade civil que têm assumido o papel de garantir apoio à comunidade.
A 14.ª edição da Avaliação Anual da Situação dos Direitos Humanos das Pessoas LGBTI na Europa e na Ásia Central, da ILGA-Europe, traça um retrato detalhado do que aconteceu entre janeiro e dezembro de 2024. O relatório compila eventos a nível nacional, regional e internacional, revelando avanços pontuais, mas também recuos graves e tendências preocupantes que atravessam fronteiras.
O discurso de ódio já não é marginal — é política de Estado
Do mesmo modo, o discurso de ódio contra pessoas LGBTI deixou de ser um fenómeno isolado. Tornou-se normalizado e, em certos contextos, institucionalizado. Governos e figuras públicas alimentam narrativas tóxicas que pintam a diversidade como uma ameaça à ‘família tradicional’. Itália e Albânia estão entre os países onde coligações conservadoras usam estas retóricas como arma eleitoral.
Porém, há também resistência. Na Moldávia, Espanha, Roménia e Letónia, iniciativas legislativas e judiciais procuram travar a avalanche de preconceitos. A luta contra o ódio tornou-se uma batalha política e cultural, onde cada frase conta e cada silêncio também.
Os números não mentem: os crimes de ódio contra pessoas LGBTI estão a aumentar drasticamente. Autoridades da Finlândia, Alemanha, Países Baixos, Noruega e Portugal relataram subidas acentuadas nos ataques motivados por orientação sexual ou identidade de género. Em cidades cada vez mais visíveis, a exposição tornou-se sinónimo de risco.
Na Bélgica, Croácia, França e no Turcomenistão, a crueldade atingiu novos patamares: os agressores criam perfis falsos em aplicações de encontros para atrair vítimas. Em alguns casos, como no Turcomenistão, são as próprias autoridades que utilizam estas táticas para perseguir e extorquir membros da comunidade.
Só no nosso país, segundo dados da PSP e da GNR, os crimes de ódio aumentaram 38% em 2023 em comparação com o ano anterior, totalizando 347 incidentes. A Associação de Apoio à Vítima (APAV) alertou que muitos destes crimes não são devidamente reportados ou são mal classificados devido a práticas inadequadas de registo.
Asilo negado, polícia e forças de segurança
Ser LGBTI e procurar asilo na Europa tornou-se um risco acrescido. Relatórios vindos de países como Áustria, Bélgica, Bulgária, Islândia, Itália e Lituânia apontam para um cenário preocupante: falta de apoio, alojamento inseguro e avaliações superficiais dos pedidos de asilo com base em estereótipos e métricas simplistas.
Na Irlanda, um requerente de asilo do Gana viu o seu processo recusado porque o tribunal considerou que a sua história carecia de ‘profundidade emocional’. A Europa, que em tempos ofereceu refúgio a perseguidos, parece agora exigir que o sofrimento seja eloquente — e convincente — para merecer proteção.
Ao mesmo tempo, russos LGBTI fogem das novas leis repressivas, mas enfrentam obstáculos nas fronteiras de países como Suécia, Moldávia ou Finlândia. Em alguns casos, só os tribunais locais, como aconteceu na Letónia, têm feito frente à máquina da exclusão.
O tratamento das pessoas LGBTI pelas forças policiais continua a divergir amplamente na região. Casos graves de discriminação e abuso foram registados em países como Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tajiquistão, Turquia e Turquemenistão.
Assim, nestes contextos, a polícia é frequentemente uma fonte de perseguição, com rusgas a casas e estabelecimentos comerciais, sobretudo contra trabalhadores do sexo e membros da comunidade LGBTI. Estas operações incluem, por vezes, violência física severa, exames médicos forçados e extorsão financeira ou de informações.
Educação, emprego, família e direitos fundamentais
Países europeus já adotaram leis que proíbem qualquer referência à diversidade sexual nos currículos escolares. Em outros, como Bulgária, Hungria, Luxemburgo, Roménia, Rússia e Turquia, há propostas em marcha para apagar as identidades LGBTI da educação sexual e da formação médica. Na Turquia, chegou-se ao ponto de eliminar ‘orientação sexual’ do juramento dos médicos.
Ainda assim, nem tudo está perdido: Suíça, Eslovénia, Sérvia e Chéquia conseguiram integrar temas de orientação sexual e identidade de género em programas educativos. Mas são ilhas de lucidez num mar de recuos.
Muitos trabalhadores LGBTI continuam a esconder quem são para evitar represálias no emprego. Relatos de discriminação surgem da Albânia à Rússia. A ausência de mecanismos de denúncia eficazes mantém uma cultura de silêncio e medo.
Há, contudo, sinais encorajadores vindos da Alemanha e Luxemburgo, onde políticas inclusivas começaram a transformar ambientes laborais. Em particular, o trabalho das organizações civis tem sido fundamental para aproximar empregadores e trabalhadores trans, criando pontes onde antes havia muros.
Se em países como Kosovo e Letónia se registaram avanços legais no reconhecimento de uniões entre pessoas do mesmo sexo, outros como Turquia e Quirguistão caminham na direção oposta. Os seus governos aprovaram reformas legais que consagram interpretações profundamente homofóbicas das estruturas familiares. Nalguns lugares, o amor continua sujeito a referendo ideológico.
A capacidade das organizações LGBTI se associarem e se expressarem está a ser erodida. Leis inspiradas no modelo russo de ‘agentes estrangeiros’ foram propostas ou implementadas na Bulgária, Geórgia, Hungria, Montenegro e Quirguistão. A União Europeia reagiu: em abril de 2024, o Parlamento Europeu condenou essas medidas e iniciou ações legais contra países como a Hungria, por violação dos princípios fundamentais do bloco.
Mas a tendência permanece: mais leis, menos direitos. A repressão cresce, agora com carimbo oficial e linguagem burocrática.
Participação na vida pública, cultural e política
A análise da participação pública, cultural e política revelou avanços notáveis em países como Dinamarca, Estónia, Lituânia, Luxemburgo, Portugal e Suécia, que lançaram novos planos de ação LGBTI para melhorar a representação e a inclusão. França, anfitriã dos Jogos Olímpicos de 2024, destacou identidades LGBTI nas cerimónias de abertura e encerramento. Apesar dos aplausos generalizados, a iniciativa gerou também reações violentas, com setores conservadores da sociedade e da política a reagirem com discursos de ódio e ameaças.
A hostilidade política contra pessoas LGBTI intensificou-se em países como Azerbaijão, Hungria, Montenegro, Rússia, Turquia, Uzbequistão e Eslováquia. Neste último, o Ministério da Cultura cortou o financiamento a iniciativas LGBTI, e um diplomata gay foi removido do seu posto nas Nações Unidas em 2024 — ações que ilustram uma crescente repressão institucional.
A opinião pública sobre questões LGBTI apresenta um panorama desigual, com avanços notórios nalguns países, mas retrocessos noutros. Na Ucrânia, houve um aumento significativo no apoio aos direitos LGBTI — 70,4% dos ucranianos defendem a igualdade de direitos, com as gerações mais jovens a mostrarem maior abertura. Tendência semelhante verifica-se em países como Bulgária, Croácia, Estónia e Hungria, onde as populações jovens e educadas demonstram uma aceitação crescente.
Contudo, noutros países como Geórgia, Chipre, Cazaquistão, Montenegro e Roménia, o progresso é lento e as questões LGBTI continuam fortemente polarizadas. Na Moldávia, por exemplo, apenas 9% dos inquiridos declararam ter uma opinião positiva sobre pessoas LGBTI, revelando o peso persistente do preconceito.
Conclusão: a Europa está a falhar com os seus valores
O relatório não é apenas um alerta — é um espelho. A Europa está a falhar as suas promessas de igualdade, liberdade e dignidade humana. Por detrás das políticas e das estatísticas, estão vidas reais a ser silenciadas, espancadas, marginalizadas.
A retórica da ‘defesa da família’ ou ‘morte ao wokismo’ tornou-se uma arma contra famílias reais. A ‘proteção da infância’ está a ser usada para justificar censura e exclusão. A democracia, nesse processo, está a perder cor — e a fechar portas a quem mais precisa.
Este não é o fim. Mas é um sinal vermelho. E já está a piscar há demasiado tempo.