A desigualdade de género em Portugal é uma questão que persiste e que, de acordo com a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, até haver um equilíbrio vai demorar 286 anos. Para compreender os desafios das mulheres no campo da Ciência e Investigação, a Líder falou com duas investigadoras, testemunhos do papel da mulher na academia, onde persiste a chamada “discriminação do século XXI”. Um tipo de discriminação mais subtil, inconsciente, mas ainda assim prejudicial.
Susana Peralta é especialista em Economia Pública e Política, Macroeconomia e Fiscalidade na Nova SBE, e Anne-Laure Fayard é especialista em Gestão e Organizações na mesma instituição, com interesse em Inovação Social, Inteligência Artificial e Design Social.
Qual a sua visão acerca da representatividade feminina em cargos de chefia e liderança na área científica?
Susana: A falta de diversidade de género (e não só, também de minorias étnicas e identidades sexuais não heterossexuais e cis-normativas) é problemática por duas ordens de razões. A primeira é de princípio: as sociedades devem ser mais inclusivas e oferecer a todo o tipo de pessoas a possibilidade de ter acesso a cargos de poder.
A segunda é de ordem pragmática: É sabido que quando os lugares de poder se decidem em circuitos mais fechados, eles também são preenchidos por pessoas com menos talentos. Logo, a falta de diversidade diminui a qualidade média das nossas chefias, com consequências nefastas para a qualidade das decisões e a eficiência da nossa economia.
Anne-Laure: O baixo número de mulheres em cargos de liderança e gestão na Ciência, Tecnologia e Engenharia é evidente. Isto também é verdade na academia como um todo e, infelizmente, na sociedade. Parte do problema é a falta de representatividade no feminino, que está ligado a outros problemas já bem conhecidos como a falta de role models, preconceitos, discriminação e ambientes em que as mulheres não são bem-vindas.
Qual a particularidade da ciência feita pelas mulheres, se é que existem diferenças, ou não há qualquer distinção em relação aos homens?
Anne-Laure:
Não vejo nada de diferente no que toca à forma como a ciência é feita por mulheres, mas sim no quanto as mulheres conseguem alcançar apesar de todas as diferenças em termos de recursos, apoio, e atenção que recebem.
O número de comités e conferências para que as mulheres são convidadas a participar (sem reconhecimento), as diferenças no acesso a espaços de laboratório em instituições científicas, no acesso a promoções e aumentos salariais são evidentes.
Neste tópico, recomendo a leitura do livro da Kate Zernike, The Exceptions, em que a autora destaca o facto de o MIT ter reconhecido discriminar as suas professoras por terem apenas 16 mulheres enquanto docentes, o que acabou por desencadear um reconhecimento nacional do sexismo na ciência. Mais importante ainda, este livro destaca a “discriminação do século XXI”, um tipo de discriminação mais subtil, muitas vezes inconsciente, mas ainda assim prejudicial. É importante ainda salientar que os mesmos problemas afetam pessoas de cor, outros géneros marginalizados, e pessoas com deficiência.
Susana: O objetivo não é promover mulheres a lugares de decisão para que façam as coisas de forma diferente. Há muito mais diversidade entre homens e entre mulheres do que entre homens e mulheres. Portanto, as mulheres devem ser cientistas e outras coisas, em lugares de destaque, porque têm qualidades e direito de aceder a esses lugares. Não porque as queremos lá para agir de uma forma especial.
De que forma se pode chamar mais raparigas a estudar e a enveredar por uma carreira nas Ciências?
Susana: Há investigação de muito boa qualidade que mostra que os role models são fundamentais para atrair mulheres para carreiras onde elas estão sub-representadas. Isto envolve (i) ter mais mulheres nos lugares de destaque, e (ii) montar programas de exposição de jovens em idade de fazer escolhas de carreiras a essas mulheres.
Anne-Laure: As mulheres mais jovens têm pouca representação na educação STEM, e isto é ainda mais evidente para raparigas de cor, e para as que estão em desvantagem económica. Esta falta de representação afeta negativamente o seu futuro e opções de carreira. Isto é um problema sistémico e social que começa com os brinquedos com que as crianças brincam, com as redes sociais, e continua nas escolas, na forma como as disciplinas STEM são ensinadas.
É de salientar ainda a falta de role models, de mentores, de percursos profissionais atrativos e culturas ocupacionais mais acolhedoras. Por exemplo, já foi comprovado que se as mulheres tendem a não entrar em carreiras de programadoras ou gaming, não é por falta de interesse ou skill, mas devido ao ambiente de trabalho hostil, pela falta de mentoria e exemplos de mulheres que já tenham seguido esses caminhos.
De acordo com dados da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), o Gender Pay Gap entre homens e mulheres em “Especialistas das atividades intelectuais e científicas” era de 19% em 2020. Que tipo de desigualdades encontram nos vossos locais de trabalho?
Susana: As mesmas que encontramos nos outros.
A maior parte das carreiras de maior destaque (sendo a ciência um trabalho intelectual, é certamente o caso) foram pensadas por homens e para homens.
Logo, as barreiras impostas às mulheres são gigantescas, tanto formais (em regras injustas), como informais (é sabido que redes de homens tendem a promover/recrutar mais facilmente homens). Por exemplo, enquanto investigadora principal de projetos da FCT, não tive direito automático a extensão da duração dos mesmos quando estive de licença de maternidade. Tive de escrever e argumentar para obter esse direito.
Outro exemplo: falta de espaços de privacidade nas universidades para tirar leite para mães que amamentam. A baixa percentagem de mulheres nos lugares de topo da carreira docente mostra bem que o jogo não está desenhado de forma justa.
Anne-Laure: Não consigo responder porque não tenho os dados, mas com base nos meus mais de 20 anos de experiência na academia, e em histórias que oiço dos meus colegas, não me surpreenderia se houvesse realmente um Gap.