«Nunca contei isto a ninguém.» No trabalho, sempre que oiço esta frase, sobretudo quando é acompanhada de alguém com os olhos marejados ou a des‑ viar o olhar, preparo‑me para tudo: uma admissão de recaída numa adicção, uma agressão sexual no passado, uma confissão de que têm sentimentos por mim.*
No entanto, na maioria das vezes, não se trata de forma alguma do que eu esperava. O Văn confessou que, nos últimos dias do seu último semestre de faculdade, um simpático professor estagiário de sociologia lhe deu uma nota provisória para passar, de modo a poder participar na cerimónia de formatura, com a promessa de o Văn lhe entregar o trabalho final na semana seguinte.
O Văn recebeu o diploma e nunca entregou o trabalho, uma traição que o envergonhou durante duas décadas. A Brigita carregou a vergonha de uma situação em que só podia sair a perder. Há muitos anos, teve a visita de uma amiga de fora da cidade que viera festejar o seu aniversário. No entanto, os amigos da Brigita também haviam planeado uma saída para comemorar o aniversário. A amiga de fora especificara que não queria sair, pelo que a Brigita fez as duas coisas: esteve em casa com a amiga antes e depois, mas entretanto também saiu com o grupo, deixando a amiga sozinha em casa, entregue a si mesma. A mãe da Brigita ficou horrorizada: «Fizeste o quê? Deixaste‑a sozinha em tua casa?»
Desde então, a vergonha ficou agarrada à Brigita como um carrapiço. Num momento de desespero, a Libby forjou a assinatura do chefe num relatório de supervisão, o que acabou por lhe rebentar nas mãos. Não foi despedida, mas o incidente foi enviado a um conselho de monitorização composto por peritos do domínio em que a Libby esperava vir a conseguir um emprego através de networking. Nenhum destes casos é um crime de responsabilidade.
No caso da Brigita, questionei se teria feito algo de errado. No entanto, independentemente de termos ou não feito algo de objetivamente errado — a nível ético, emocional, social, societal — todos tivemos experiências como a do Văn, da Brigita ou da Libby, em que sentimos que (*espreitar por entre os dedos*) falhámos. Falhar. Oh, essa palavra. Dá‑nos arrepios. Mas vamos defini‑la. O «fracasso» significa não estarmos à altura das expectativas, nossas ou dos outros. Por vezes as expectativas são objetivas e universais — direito, normas sociais, senso comum básico. Porém, as pessoas que são duras consigo mesmas fazem duas coisas para complicar a questão: uma é o facto de as nossas expectativas serem frequentemente subjetivas, rigorosas e autoimpostas. Estabelecemos a fasquia do que é adequado a «um nível elevado e pessoalmente exigente». A outra é adotarmos uma abordagem de tolerância zero para com os erros, reformulações ou dificuldades.
Nesse contexto, criamos as condições para transgredirmos muitas vezes os nossos padrões pessoais. E quando tal acontece, é grave. Reagimos fortemente. Pense num mero amendoim. Quando alguém que não é alérgico a amendoins come um, tudo corre bem. Já quando alguém com alergia aos amendoins come um, há uma grande reação: o amendoim provoca urticária, inchaço, diarreia e até anafilaxia. Quem é duro consigo mesmo tem uma alergia a amendoins metafóricos, que são os erros.
Quando alguém que não sofre de perfecionismo comete um erro, não é nada de especial. Podem sentir um pouco de embaraço, exclamar «Oh, a culpa foi minha!» e se necessário pedir desculpa. Porém, quando nós cometemos um erro, objetiva ou subjetivamente, temos uma grande reação. Registamos os erros na nossa escala de Richter pessoal a um nível exponencialmente mais elevado do que as pessoas que não sofrem de perfecionismo. Mesmo os pequenos fracassos (perder a noção do tempo e falhar um compromisso, recomendar um restaurante que acaba por não ser bom) ficam agarrados a nós como a língua a um poste congelado. Para mim, atrasar‑me dez minutos é um festival de stress repleto de adrenalina.
Trocar o nome de alguém, carregar inadvertidamente em «Responder a Todos» ou esquecer o aniversário de um amigo é algo que nos provoca uma vergonha intensa: uma pequena abelha com um grande ferrão. As nossas ondas de choque podem ser emanadas para o exterior: podemos assumir uma atitude defensiva, culpar os outros, ou intensificar a tónica na lógica e na razão. Ou a grande reação pode ir para dentro: autocríticas rígidas, alheamento, dores de barriga, procrastinação.
(…)
O problema não somos nós, são as nossas expectativas
Para o cérebro de quem é duro consigo mesmo, é tudo ou nada. Ou estamos à altura das nossas expectativas ou fracassamos. Não esqueçamos que os nossos padrões estão enraizados num aspeto positivo: o facto de sermos conscienciosos. Contudo, por vezes são elevados ao ponto de se tornarem impossíveis para um ser humano. Muitos dos exemplos seguintes são do Dr. Thomas Lynch, o criador do tratamento da Terapia Comportamental Dialética Radicalmente Aberta, comprovada empiricamente, que conhecemos no capítulo 5. Podemos não ter estas expectativas literais, mas em essência são representativas.
Espero…
… fazer sempre o que está correto.
… ser sempre amável e atencioso.
… tomar sempre as decisões ideais.
… conseguir controlar o modo como os outros me veem.
… ser capaz de saber o melhor rumo a seguir.
… conseguir controlar as emoções, experiências e reações dos
outros.
… ser capaz de prever com rigor o que acontecerá no futuro.
… ser capaz de saber as intenções dos outros.
… superar qualquer obstáculo ou resolver qualquer problema,
independentemente de onde ou como possa surgir.
O veredito? O problema não somos nós — são as nossas expectativas. Ninguém age sempre corretamente. Nenhum ser humano pode prever rigorosamente o que acontecerá no futuro. Apesar da tenacidade de que está imbuída a nossa cultura de nunca desistir, não podemos superar todos os obstáculos nem resolver todos os problemas. Como se costuma dizer, a morte é certa. Em suma, quando falhamos, recriminamo‑nos, mas o problema não somos nós — é a bitola que utilizamos para nos medirmos. A solução é repensarmos as expectativas. Arrependemo‑nos de ter perdido a cabeça com um amigo? Devemos pedir desculpa, é claro, mas também abandonar a convicção de que iremos sempre ser amáveis e atenciosos. Lamentamos ter desistido da nossa pós‑graduação de sonho por causa de uma relação que acabou por não funcionar? Devemos questionar a expectativa de que iremos sempre tomar a decisão certa, bem como a de podermos, com o rigor de uma bola de cristal, prever o que acontecerá no futuro.
Quando sugiro aos meus clientes que repensem as expectativas, por vezes olham para mim como se tivesse proposto despejarem idosas das suas casas. Sentem que lhes estou a pedir que baixem os seus padrões. Não é isso que estamos a fazer. Defenderia que estamos a manter os mesmos padrões elevados: sermos amáveis e conscienciosos, tomarmos boas decisões, pensarmos no futuro. No entanto, estamos a permitir alguma flexibilidade — algum espaço de manobra.
Estamos a reconhecer que não podemos passar pela vida à espera de cometer zero erros, ter zero falhas de julgamento, ou encontrar zero problemas insuperáveis. Os erros fazem parte do pacote de estarmos vivos. Os arrependimentos são o imposto que pagamos por termos relacionamentos humanos. Já todos tivemos um deslize. Todos magoámos pessoas de quem gostamos. Todos tivemos atitudes idiotas. Ainda podemos ter expectativas elevadas, mas podemos aprender que não as alcançar não nos torna fracassados — significa apenas que estamos a viver a experiência humana. E isso liga‑nos a todos os seres humanos que já existiram.
Este conhecimento pode provocar desalento. É dececionante percebermos que somos falíveis. É triste aceitar a ideia de que não conseguimos ver, e muito menos controlar, o futuro. É uma perda, desistir da noção de que podemos tomar decisões perfeitas, isentas de arrependimentos, e executá‑las. No entanto, em certa medida a ideia é essa. Sentir tristeza e desilusão pela perda das nossas expectativas irrealistas é um passo importante no sentido da autoaceitação. O desgosto é a reação emocional à perda. De facto, o Dr. Lynch ensina‑nos que, tal como sofremos com a perda de uma pessoa ou animal de estimação, podemos sofrer com a perda das nossas expectativas e convicções do tipo «tudo ou nada». Arrependemo‑nos de certa noite termos trocado beijos e carícias com dois tipos — sofremos devido à expectativa de tomarmos sempre as decisões ideais. Só queríamos provocar uma paixoneta, mas acabamos por dar um pum descomunal em frente a cinquenta pessoas — sofremos devido à convicção de que podemos prever o que acontecerá, ou de que nunca nos acontecerá nada de embaraçoso. Sentir a perda é importante porque quando tentamos evitar «sentir» acabamos muitas vezes a «pensar». E então?
Preocupamo‑nos, ruminamos e remoemos; ficamos presos ao que «devíamos» ter sabido ou feito. Não se trata de um resultado imediato. O processo de luto devido à perda das expectativas (até das expectativas irrealistas) demora tempo. Abdique repetidamente da expectativa de que nunca fará nada de embaraçoso, idiota ou errado. Aceite a ideia de que os erros não são falhas pessoais, mas parte do pacote de estarmos vivos.
É difícil. Eu compreendo.
* O facto de isto acontecer nada tem que ver comigo, mas deve‑se à natureza única do relacionamento de psicoterapia. Quando as confissões vulneráveis são recebidas com uma aceitação incondicional, como é evidente, o nosso cérebro reage com apego e afeição. Faz parte de sermos pessoas normais, com sentimentos profundos.
Este artigo consiste num excerto adaptado do livro Como ser bom o suficiente (Nascente, 2025), de Ellen Hendriksen, publicado com o consentimento da autora.