Uma mulher taxista no Afeganistão, trabalhadores que resgatam animais presos no gelo, um homem que vende máscaras na Feira da Ladra em Lisboa, estes são retratos das boas e, por vezes, más práticas e condições em que vivem os que trabalham.
Começou ontem a 19ª edição do DOC Lisboa, que este ano apresenta, pela primeira vez, o Prémio Lugares de Trabalho Seguros e Saudáveis, resultado da parceria com a Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho que, desde 2009, distingue um filme de temática laboral.
Cinco dos nove filmes a concurso para o Prémio 2021, irão estar representados pelos seus realizadores e produtores na mesa-rendonda “Trabalhadores a filmar Trabalhadores”, que esta tarde na Culturgest vão debater as diferentes políticas culturais e laborais europeias e a forma como influenciam os filmes e as vidas dos que os fazem.
A Líder esteve à conversa com Miguel Ribeiro que faz parte da Direção do DOC Lisboa, juntamente com Joana Gusmão e Joana Sousa, e que nos falou dos filmes a concurso, da ligação quase embrionária entre o cinema e o trabalho, referindo-se ainda à situação do atraso da aprovação do estatuto do trabalhador cultural em Portugal
“Trabalhadores a filmar Trabalhadores” remete-nos para como a sétima arte vê o mundo do trabalho. Quais os objetivos deste projeto?
Esta conversa entre realizadores e produtores, que não são mais do que trabalhadores, surge no âmbito da parceira com a Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho. Em paralelo à seleção de filmes sobre questões contemporâneas do mundo do trabalho, há o momento de debate sobre o cruzamento entre o cinema, enquanto ferramenta para olhar o mundo e o trabalho. Após um ano e meio de Pandemia, em que ficaram visíveis as fragilidades em que trabalham tantas pessoas do sector da cultura, e do cinema em particular, resolvemos referir a quem filma enquanto trabalhadores, esta ideia de que na verdade somos trabalhadores da cultura – somos artistas, mas também trabalhadores.
Que filmes estão em competição ao Prémio Lugares de Trabalho Seguros e Saudáveis?
Os nove filmes em competição trazem uma diversidade muito grande sobre aquilo que é o trabalho. Dos cinco filmes que vão participar na mesa-redonda, o filme português “Yonn”, acompanha a vida de um homem que faz regularmente a viagem de carro Lisboa-Dakar para ir buscar máscaras que depois vende na Feira da Ladra. De Espanha, o filme “Oh Dear Sara” retrata a primeira mulher taxista no Afeganistão que utiliza a questão da condução para empoderar outras mulheres da sua comunidade. O filme “From the 84 Days”, de realização e produção alemã, mostra um grupo de músicos experimentais bolivianos que ficaram 84 dias “presos” na Alemanha, depois de terem sido apanhados pela Pandemia COVID-19, quando foram a Munique dar um concerto. Da Dinamarca chega o filme “From the Wild Sea”, sobre trabalhadores no Ártico que se dedicam ao resgate de animais que ficam presos no gelo. E, finalmente da Croácia, “Factory to the Workers”, acompanha uma das primeiras situações de ocupação de uma fábrica por trabalhadores no momento pós-Jugoslávia.
O que é um lugar de trabalho seguro e saudável?
O Prémio é pensado com a ideia de que o local de trabalho deve ser seguro e saudável, e o cinema e os seus debates podem ajudar a pensar sobre os filmes nessa perspetiva. Ainda há uma discussão importante a ser tida em relação ao que são as condições laborais em vários contextos e que em conjunto, nestes debates, é promovida pela Agência Europeia. Este prémio tem uma continuidade, pois serve de matéria de trabalho efetiva por toda a Europa, sendo os filmes exibidos em cada País e promovendo-se a discussão através de agências locais de trabalhadores e patronato.
De que forma a sétima arte olha para o trabalho?
A relação do cinema com o trabalho é seminal. As primeiras imagens da história do cinema mostram a saída dos trabalhadores da fábrica, pelas mãos dos irmãos Lumière. Todo o cinema, e o cinema documental em particular, ao debruça-se sobre o mundo e o seu tempo, considera o trabalho como uma parte fundamental das nossas vidas.
E como olha para os líderes?
A Sara, taxista no Afeganistão, é uma líder. É através desse caracter que ajuda a sua comunidade a avançar para a emancipação de outras mulheres. As boas práticas levam-nos a formas de liderança mais avançadas, e as lideranças podem ter muitas caras, podem ser figuras individuais ou mais coletivas. O cinema permite aos espectadores olhar com os olhos de quem chega aquele lugar e ter a liberdade de nos posicionarmos em relação aquilo que vemos retratado. Também os realizadores e produtores são líderes pois têm uma responsabilidade sobre a forma de produção dos seus filmes.
De que forma as diferentes políticas culturais e laborais da Europa influenciam a maneira como os filmes são feitos e as vidas dos que os fazem?
Tendo em conta a forma como o cinema é feito, que na sua maioria é com financiamento público, é inevitável pensar que na verdade muitas das condições laborais que existem no modo de fazer filmes têm a ver com políticas laborais, artísticas e culturais. A vontade coletiva de promover melhores práticas laborais está muito dependente daquilo que são as possibilidades políticas para implementar uma série de boas práticas. Num contexto Europeu, com vários países representados nesta mesa redonda, quisemos perceber quais são as dificuldades e desafios de cada um destes contextos e a partilha de bons exemplos.
E em Portugal, como está o estado da arte?
Está neste momento em processo de estudo e análise a entrada do estatuto “trabalhador da cultura”. O trabalho cultural assume uma especificidade própria, tendo uma grande componente não remunerada que tem a ver com investigação e liberdade de pensamento até chegar ao momento de produção de um filme. Em França, o estatuto de trabalhador da cultura já existe há algum tempo e considera que no momento em que não está a haver produção do trabalho, o trabalhador tem uma remuneração correspondente aquilo que foi a sua produção no ano anterior, para que possa no ano seguinte criar.
Em cena desde 2004, o DOC Lisboa é hoje uma referência dos Festivais de cinema dedicados ao documentário e que ao longo dos próximos 10 dias vai projetar 249 filmes em três espaços na cidade de Lisboa.