Discutimos a democracia, a autocracia, a teocracia, a plutocracia. Convém também discutir a egocracia (termo usado pelo filósofo francês Claude Lefort), um regime tão antigo e tão moderno como as sociedades humanas. A egocracia é o governo pelo ego. Trump é, nos tempos modernos, o seu maior epítome. Tudo, na liderança de Trump, é medido por uma só bitola: ele próprio. À luz dessa bitola, Trump é um dos melhores líderes da história americana (talvez apenas atrás de Abraham Lincoln – talvez!), o incomensurável patriota, o génio estável, o líder com um elevadíssimo QI, o Presidente que resgatou a grandeza dos EUA. Trump brilhou no combate à crise pandémica. Para Trump, heróis são os que, como ele, fugiram à tropa – não os que deram a vida pela pátria, ficaram estropiados ou sacrificaram parcelas importantes das suas vidas. Os militares que estão sepultados são “falhados” e “otários”. Trump será descrito como um dos grandes líderes da história dos EUA, senão da humanidade – assim reza a história escrita por Trump.
Mentiroso sem remorsos, moral e emocionalmente estúpido (expressão de David Brooks, New York Times, 11 set. 2020), Trump é um risco global. O general Jim Mattis, ex-secretário de Estado do governo de Trump, que bateu com a porta, considerou-o perigoso, desprovido de bússola moral, e inapto para o exercício da Presidência. Mattis confidenciou a altos funcionários da Administração norte-americana que poderia haver necessidade de adotar “ação conjunta” para impedir o desastre. Dan Coats, o então diretor nacional dos serviços de informações, afirmou: “Para Trump, uma mentira não é uma mentira. É apenas o que ele pensa. Ele não sabe a diferença entre verdade e mentira”.
Muitos julgávamos que esta egocracia que preza o imoralismo não teria viabilidade num país moderno do século XXI. Mas a possibilidade de Trump ser reeleito é real. E, se não for, poderá infernizar a vida ao seu sucessor. Trump é, do ponto de vista político, a COVID-19 da política. Julgávamos que as suas diatribes tinham sido apenas material de campanha que se desvaneceria com as exigências do exercício do cargo e as balizas constitucionais e institucionais. Desvalorizámos, numa fase inicial, a crise pandémico-política que ele começou a semear. A emergência de Trump dá-nos conta de que não podemos tomar nada por adquirido. Trump está para a saúde da liderança política como a COVID-19 está para a saúde dos humanos. E os dois vírus estão associados: a quantidade de casos e de óbitos por COVID-19 nos EUA é amplamente desproporcional à dimensão populacional do país. Infelizmente, para o mundo civilizado, também Trump se transformou numa espécie de novo normal. Os seus dislates incivilizados são tantos e tão frequentes, sem grandes danos na sua base eleitoral, que há quem passe a encarar como normal o que é uma grande anormalidade. Um gestor disse-me, um dia, que achava piada a Trump. Na melhor das hipóteses, é uma piada de muito mau gosto.
Se não formos vigorosos na reprovação desta e de outras incivilidades, arriscamos a que elas se transformem numa pandemia – que contamina a vida política, mas também a empresarial. A liderança também se aprende mediante a observação de outros líderes, num processo denominado “aprendizagem vicariante”. O comportamento incivilizado e impune de Trump é uma fonte de inspiração para alguns aprendizes de liderança em todo o mundo, político e empresarial. Quem o aprecia vê nele e na sua vitória eleitoral uma fonte de legitimação das suas próprias trumpalhadas. Trump contamina.
Este comentário não contribui rigorosamente nada para alterar a cena norte-americana. É, portanto, uma declaração do meu estado de alma. Espero, em qualquer caso, que ninguém seja contaminado pelas trumpalhadas na sua própria organização. No creo en brujas, pero que las hay, las hay. Portanto, a melhor forma de evitar a emergência de Trumps organizacionais é impedir, em cada organização, que se transformem em vírus.
Por Arménio Rego, LEAD.Lab, Católica Porto Business School