Em todos os fenómenos da nossa vida, mesmo da vida dos ateus (que são pessoas com fé profunda numa tese), a espiritualidade está presente. Mais do que a espiritualidade, há sempre uma crença que pode advir de experiências e vivências diferentes e de ambientes culturais diversos.
Crença – e eu sou crente – não significa, ao contrário do que pensa muita gente no nosso país – ser católico ou ser cristão, embora católicos e cristãos, naturalmente, façam parte do número dos crentes. Mas basta postular que existem verdades exteriores a nós e fenómenos ou conhecimentos que ultrapassam a nossa compreensão ou razão, para alguém se afirmar crente, no sentido em que crê numa verdade não demonstrável nem numa evidência empírica.
Alguns, fazem-no através do chamado “salto de fé”. É o caso dos que creem numa determinada religião. Os católicos creem em fenómenos apenas atingíveis por esse “salto”. Por exemplo, a transubstanciação, ou seja, no momento da comunhão a hóstia mudar de substância e passar a ser o Corpo de Cristo. A virgindade de Maria será outro exemplo.
Há, também, crentes em aspetos mais simples, mas igualmente inexplicáveis. A chamada religião natural dos enciclopedistas, o conhecimento acumulado da humanidade como transcendente a cada ser humano e ao conjunto dos seres a cada momento, as causas de reflexos, tabus e atavismos com que nascemos e servem para realizar a tarefa principal dos seres vivos, que é sobreviver e reproduzir-se, é outra ideia de transcendência que se traduz numa espiritualidade.
Seja qual for o tipo de crença, com mais, menos ou nenhuma fé, ela tem sempre por base a esperança.
A esperança é uma das mais misteriosas ferramentas dadas ao Homem (homem vem do latim Homo que significa ser humano; há quem confunda com Homo grego que quer dizer do mesmo género, como homólogo, homónimo ou homossexual, pelo que não me obriguem a parecer mais básico do que sou e escrever Homem e Mulher). Voltando à esperança e ao seu fabuloso significado e símbolo, basta recordar que Pandora, a primeira mulher criada por Zeus, ao abrir uma Caixa (ou jarro) que lhe estava confiada com a recomendação de não a abrir, soltou todos os males do mundo. Mas no fundo ficou a esperança, pois é ela que nos mantém vivos. O Inferno, diz a teologia católica, é a ausência de esperança; assim como Dante, na Divina Comédia, coloca o letreiro à porta do Inferno com os dizeres: ó vós que aqui entrais abandonai toda a esperança.
Sem esperança não se vive. Como não se vive sem crença ou fé. A palavra fé, no étimo fides, significa crença e ainda hoje os bancos falam em sistema fiduciário, porque o negócio bancário, como o dos seguros, se baseia nessa confiança, fé ou crença… (e mais recentemente na esperança de que não lhes aconteça mais nada que tenhamos de pagar).
Mas há mais duas coisas que nos traz a espiritualidade: valores éticos, por exemplo, algo que nos leva a fazer coisas contra o nosso interesse ou vontade imediata para não prejudicar outros. A ética é uma construção social natural (conhecimento acumulado da humanidade) ou, dizem os religiosos, a palavra de um deus que é ele próprio ethos, o Ser Supremo. “Eu sou aquele que sou” terá dito Deus, sob a forma de sarça ardente, a Moisés quando este lhe pergunta o nome. Seja qual for a origem desses valores éticos, estes são reconhecidamente indispensáveis à vida em comunidade.
Finalmente, a perenidade, ou a eternidade. A crença numa vida futura é, por vezes, demasiadas vezes, literalmente vista como outro mundo onde nos passeamos e encontramos os antepassados, os amigos que partiram antes de nós. É, como para os gregos antigos, uma viagem sem retorno, passando o rio Aqueronte, guiados pelo barqueiro Caronte até ao reino de Hades, o deus do mundo inferior, do esquecimento. No entanto, a eternidade consubstancia-se na posteridade de cada um. Seja pelos feitos realizados (os que “se vão da lei da morte libertando”, como escreveu Camões), seja pela prole deixada. Filhos, netos, bisnetos, gerações, como Deus prometeu aos seus primeiros profetas e também a Ismael, filho de Abraão e da escrava Agar, que seria o antepassado de todos os muçulmanos.
Não há boa liderança, do meu ponto de vista, sem estes atributos:
- Uma forte crença ou fé no que fazemos;
- Uma enorme esperança no nosso sucesso;
- Um sentido ético irrepreensível nos nossos processos;
- Um desejo claro de estar a construir algo para o futuro, algo que deixará marca e jamais morrerá.
Estes atributos essenciais não cabem na muito propalada inteligência artificial. Em fevereiro, na Sociedade de Geografia, numa conferência sobre cibernética, tive a oportunidade de me debruçar sobre o tema. Na altura disse:
“A inteligência artificial pode criar os algoritmos para a nossa pontuação de crédito social, ou para plataformas controladas que acabam a escolher primeiros-ministros populistas, dando a ideia de que foi uma eleição limpa. No entanto, jamais saberá coisas que, por ora, nos são exclusivas: o amor, a honra, a camaradagem, o sacrifício pelos outros, o choro, o riso, a esperança.
Havemos de encontrar os mecanismos e os modos de colocar a relação homem-máquina, a relação cibernética que nos permitiu o ciberespaço em que nos movimentamos, ao serviço daquilo que a nossa inteligência natural sempre entendeu por aperfeiçoamento moral, material e espiritual da sociedade. Numa palavra, que aliás vem dos Fundadores dos Estados Unidos da América, na busca da felicidade”.
Não mudei de entendimento nos últimos três meses. A inteligência artificial ser-nos-á útil, pode ser perversa, mas não acredito que possa entender e menos substituir a essência do que somos: seres espirituais, o que segundo se pensa nos distingue de todos os outros animais. Esperemos que também das máquinas.
Por: Henrique Monteiro, jornalista e antigo diretor do Expresso