Por entre frases longas e ideias mais densas do que os arquivos que guarda, José Pacheco Pereira não poupou críticas à forma como a comunicação política se esvaiu e empobreceu até se transformar numa caricatura.
O Instituto de Políticas Públicas da Nova SBE concretizou a primeira edição do Policy Fest, um evento aberto ao público que aconteceu na quinta-feira passada, ao longo de todo o dia, no Campus de Carcavelos da Nova SBE.
O festival reuniu especialistas, académicos e cidadãos para discutir temas fundamentais sobre políticas públicas, promovendo o diálogo e a reflexão sobre questões prementes para o país e o mundo. O historiador, cronista e antigo deputado marcou presença e sentenciou desde logo que «a política se tornou paupérrima, reduzida à frase assassina que cabe num soundbite».
O «caçador-recoletor» da história
José Pacheco Pereira não se apresenta como um homem de títulos ou especializações formais. Em vez disso, adota o conceito ancestral de «caçador-recoletor». Para ele, a profissão que o define não cabe em formulários e é um reflexo de sua relação com os livros, papéis e arquivos que armazena – não por nostalgia, mas porque considera que «a história é um armazém de experiências». Sem esse repositório de memórias, afirma, «não há políticas, nem política».
Durante a sua intervenção, Pacheco Pereira disse que as palavras são um reflexo do empobrecimento da comunicação contemporânea. A política é agora dominada por «frases curtas, diretas e, muitas vezes, vazias, desenhadas para provocar indignação imediata, mas sem espaço para reflexão ou análise profunda». No fundo, isto dá lugar a um público já não procura entender o outro, mas apenas confirmar as suas próprias crenças.
O impacto do marketing político e da propaganda
Pacheco Pereira trouxe à tona o velho debate entre marketing político e propaganda, que, ao longo dos anos, «deixou de ter qualquer diferença significativa». Mergulhou nos arquivos e utilizou o exemplo do SPN (Secretariado de Propaganda Nacional), o organismo do Estado Novo, para ilustrar como a propaganda não é uma prática nova, mas um instrumento que sempre foi usado para controlar a narrativa e construir um certo tipo de imagem pública.
Mas o ponto crucial que Pacheco Pereira destaca está nas estratégias de marketing político atuais, que, segundo ele, «retiram a autenticidade da política». Em vez de debate e confronto de ideias, o espaço público transforma-se num espetáculo, onde tudo se encena e nada se discute. A crítica vai além da aparência. O problema está na forma como essas imagens são apresentadas, ocultando as verdadeiras condições de vida e a multiplicidade de experiências que elas representam.

A crítica ao mundo universitário e à superficialidade da academia
Quando Pacheco Pereira se volta para a academia, é com uma crítica mordaz. A universidade, tal como muitos outros sectores da sociedade moderna, caiu numa armadilha que o historiador vê como uma fuga para as questões mais cómodas e mediáticas. O que vê, na sua análise, é uma academia que se «perde nas discussões sobre identidades, feminismo e outros temas, que, embora importantes, não deveriam obscurecer os debates fundamentais sobre o país real».
A ênfase nas questões identitárias está a empurrar a academia para uma «desconexão perigosa com a realidade concreta das pessoas». Para Pacheco Pereira, os intelectuais de hoje preferem discutir as «questões da moda em vez de se debruçarem sobre as questões mais urgentes e tangíveis», como a crise económica, a desigualdade social ou a precariedade laboral.
A manipulação e a ascensão do pathos
Num tempo em que a emoção ultrapassou a razão, Pacheco Pereira critica abertamente a ascensão do pathos e a morte do logos. Para ele, a «política moderna foi tomada por discursos que apelam mais às emoções do que à razão». Na arena pública, quem fala com maior paixão, quem faz o maior escândalo, é quem mais facilmente conquista a atenção.
O jornalismo e os meios de comunicação têm um papel fundamental nisso, ajudando a perpetuar essa tendência. Em vez de aprofundar temas, discutir alternativas e explorar diferentes pontos de vista, segundo o historiador «o jornalismo moderno vive do sensacionalismo e do imediato». Nas suas palavras, assim, o «debate político não é mais uma conversa entre diferentes propostas, mas um espetáculo onde se procura, acima de tudo, gerar reações rápidas», e que podem ser medidas, instantaneamente, nas redes sociais.
A consequência desta tendência é que «as ideias se tornam cada vez mais simplistas, mais polarizadas e, ao mesmo tempo, mais vulneráveis à manipulação». Pacheco Pereira observa que, no parlamento ou nas tribunas públicas, as discussões que envolvem verdadeira argumentação são cada vez mais raras. «O foco não está mais no conteúdo das ideias, mas na capacidade de fazer o outro parecer fraco ou ridículo».
A perda de referências culturais e o novo analfabetismo
Pacheco Pereira critica duramente a perda de referências culturais na sociedade moderna, sobretudo nos jovens, apontando que, ao longo dos anos, a nossa compreensão de símbolos e histórias tradicionais foi progressivamente desnutrida. Deu o exemplo da mitologia de Adão e Eva, que, segundo ele, «os miúdos não sabem o que representam».
Para o historiador, isso não é apenas uma questão de cultura, mas de construção da própria identidade coletiva. Ao perdermos esses marcos culturais, estamos a assistir ao desmoronar de um alicerce que já sustentou o pensamento e o debate político e social, abrindo espaço para uma era em que o conhecimento é superficial, individualista e, muitas vezes, distorcido.
Outro dos pontos mais incisivos de sua crítica foi sobre o analfabetismo moderno, particularmente o analfabetismo digital. Pacheco Pereira relatou como, na sua experiência como professor, viu alunos a produzir trabalhos baseados em fontes questionáveis, como blogs não verificados, e com pouca noção do que constituía um conhecimento fundamentado. Esse «analfabetismo com confiança», como ele o define, é particularmente perigoso, «pois as pessoas se sentem seguras com as suas crenças erradas, sem saber que estão mal informadas».
Mas a crítica não se limita apenas aos estudantes. A alienação está presente numa sociedade que, dentro das suas bolhas, deixa de perceber as realidades mais duras. Pacheco Pereira recordou uma visita aos Estados Unidos: «numa conversa com alguns académicos, espanto o meu quando um dos intervenientes correlacionou o número de abortos com o número de catástrofes naturais», concluiu.
Como combater a alienação?
Por fim, Pacheco Pereira desafia a todos a enfrentar esta alienação com um confronto direto. A sua mensagem é clara: não há lugar para suavizar as palavras, não há espaço para ficar na superfície. O caminho para restaurar a política verdadeira e a reflexão profunda é «com bronca, com escândalo, com confronto». Propõe uma política que não tenha medo de mexer com as estruturas estabelecidas, que ponha em causa os dogmas que dominam o discurso público.
O desafio, como ele refere, é resgatar o espaço para o debate genuíno e profundo, e «reconectar as pessoas com a complexidade da realidade que as rodeia». Sem essa capacidade de fazer a reflexão voltar ao centro da política, teme que esta se afunde ainda mais na superficialidade, condenando-nos a um futuro em que a história e a verdade se perderão no vazio. José Pacheco Pereira continua a ser daqueles homens que não se explica, acumula-se. No país da superficialidade, há quem ainda fale com notas de rodapé no timbre da voz.
Fotografia: WANDERSOUL STORIES