O rito de lava-pés, durante o Tempo Pascal, pode exercer sobre nós um efeito transformador. Tive o privilégio de assistir a essa cerimónia, recentemente, durante uma enternecedora missa pela memória de um grande amigo. Durante os dias de descanso que a Páscoa permitiu, aproveitei para ler “Jack Welch – The Man Who Broke Capitalism”. A relação entre os dois temas pode parecer bizarra. Mas não é. Há quem lidere lavando os pés das pessoas – e há quem lidere forçando as pessoas a beijarem-lhe os pés.
Jack Welch liderou a General Electric (GE) durante duas décadas, e fê-la crescer exponencialmente. Foi idolatrado como uma espécie de messias da gestão. Os mercados ajoelharam-se a seus pés. Chegou a ser considerado “o gestor do século”. Focado, brutalmente, no desempenho financeiro e na maximização do valor para o acionista, cultivou a contabilidade criativa e despediu muitos milhares de pessoas ao mesmo tempo que se banqueteava com chorudos milhões. Destruiu capital social e desinvestiu em inovação, investigação e desenvolvimento. Encarando a empresa como máquina de fazer dinheiro, hipotecou objetivos de sustentabilidade. Ao libertar a empresa da responsabilidade social perante os empregados, levou a cabo uma “campanha contra a lealdade”. Ou seja: encarou o empregado como mero recurso que não deve esperar qualquer lealdade recíproca.
Welch tentou moralizar a incivilidade e a brutalidade. O despedimento foi representado como uma “transição” na vida do empregado, uma oportunidade para recomeçar, uma passagem similar à que ocorre quanto alguém passa do ensino secundário para o universitário, ou encontra o primeiro emprego após concluir estudos superiores. Considerou um “pecado manter os 10% mais fracos”. Em suma: pretendeu fazer crer que “ser despedido é uma bênção” e que despedir alguém é um ato de compaixão. Eis o seu ponto:
“Algumas pessoas entendem que é cruel ou brutal remover 10% de empregados, os mais fracos. (…) Não é. É exatamente o oposto. O que eu penso que é brutal e ‘falsa gentileza’ é manter por perto pessoas que não vão crescer nem prosperar. O que é cruel é esperar ou dizer às pessoas apenas no final das suas carreiras que já não pertencem à empresa, quando as suas opções de carreira já são limitadas e estão prestes a colocar os filhos na faculdade e a pagar grandes hipotecas”.
Este argumento “moral” de Welch coabitava com a sua forma favorita de descrever um despedimento: “Fuzilem-nos (…) Devem ser baleados”. Em suma, parafraseando David Gelles: Jack Welch era um bully que, por ser idolatrado, era movido por um grande sentido de impunidade. O espírito messiânico de Welch, que usou argumentos pretensamente morais para legitimar a crueldade, criou raízes em programas políticos e justificou a desigualdade crescente. Nos EUA, em 1965, os CEO auferiam cerca de 20 vezes o salário de um empregado médio da empresa. Este rácio começou a expandir-se quando Welch tomou o leme da GE. Em pouco tempo, o rácio passou a 50 vezes, depois a 100, e posteriormente a 200. Dados recentes mostram que, para as 350 maiores empresas cotadas, o rácio se aproxima de 400 vezes.
Os discípulos de Welch reproduziram a receita brutal nas empresas onde foram sendo colocados. Foram herdeiros ideológicos seus que conduziram a Boeing a focar-se na maximização do valor para o acionista, abandonando uma cultura assente na segurança. O resultado está à vista: acidentes fatais com o Boeing 737 Max e uma empresa que, não fosse a dimensão e valor estratégico-político, poderia ter entrado em bancarrota. Noutras empresas em que a mesma receita foi usada, os resultados foram igualmente desastrosos. Mas os seus fautores, os mesmos que defendiam a importância da remoção dos empregados alegadamente medíocres, foram protegidos por “paraquedas dourados”.
Seria injusto retratar Welch e o seu legado apenas com estas tintas trágicas. Romantizar a liderança e a gestão, como se as decisões difíceis e dolorosas não tivessem de ser tomadas, seria irresponsável. Mas seria igualmente absurdo legitimar moralmente o paradigma de gestão de Welch socorrendo-nos apenas dos méritos de “Neutron Jack” – a sua alcunha. Não é esse, pois, o meu ponto. O que defendo é a necessidade de não normalizarmos o desvio través da moralização (ou subestimação do impacto) de práticas cruéis, apenas porque estas são frequentes e se transformaram no “novo normal”.
O rito de lava-pés recorda-nos que as lideranças (também) têm o dever moral de servir as pessoas – em vez de simplesmente se servirem delas. Gerir e liderar é um trabalho árduo. Mas não é menos árdua a vida de quem, trabalhando, vive na pobreza e tem dificuldade em viver com dignidade. A edição do jornal Expresso do passado dia 14 de abril dava conta de que, nos últimos 1o anos, os salários dos CEO das empresas cotadas no PSI subiram 47%, enquanto os salários brutos dos trabalhadores dessas empresas estagnaram. A diferença salarial entre o topo e a base passou de 20 a 36 vezes mais. No editorial, o Expresso escreveu: “Os salários dos CEO em Portugal não seriam um problema se os salários dos trabalhadores não tivessem sido esquecidos.” Portanto, discutir o rito de lava-pés e “Neutron Jack” no mesmo artigo não é uma excentricidade!