É senhora de si e tem em si muitas Martas. A combativa, a palavrosa, a destemida, a provocadora, a rebelde, mas também a observadora, a vulnerável, a ouvinte, a leitora. Marta Rebelo fala de si como “ex-deprimida” e “ansiosa ocasional”, dois cognomes que se transformaram em causas nacionais.
Viveu momentos de buracos negros, de desesperança, mas soube combater o estigma e resignificar a sua experiência. Enfrentou a doença mental de frente, escancarou as portas ao tema, arejou-o e é um dos rostos da causa saúde mental em Portugal.
Entre 2005 e 2009 foi deputada do PS e nos últimos anos tem-se dedicado a alertar para a urgência de um sistema público de saúde mental e para a necessidade de investimento governamental nas doenças mentais.
A Marta de hoje talvez não tenha o mesmo corte e cor de cabelo da fotografia, nem consigamos precisar com que idade se sente. “Tenho 45, embora às vezes me sinta uma alma velha com 90, ou uma miúda de 9”. Mas para que não restem dúvidas, é uma mulher de esquerda, feminista, ativista dos direitos humanos e dos animais, com um humor negro apurado, que sabe escarafunchar o dedo na(s) ferida(s) e vê na singularidade das pessoas, já que abomina carneiradas, o sublime da vida.
É um exemplo de uma líder que se soube reerguer. O que foi determinante para o seu renascimento?
Tal como as doenças mentais, que são multifatorais, sair delas também é uma equação combinada de fatores – e não existe uma fórmula mágica que sirva a todos. A minha terá sido a curiosidade de procurar toda a informação, todos os caminhos, toda a ajuda e autoconhecimento sobre mim e sobre a depressão e a síndrome de ansiedade generalizada; a insistência, porque foram duas décadas com momentos terríveis e, nesses, insistir em viver e ultrapassar foi duríssimo; e as minhas pessoas: tive a sorte de ter uma mãe e irmãos desprovidos de preconceito, e de ter ao meu lado alguém que não tem qualquer vergonha da minha história, e tem muito orgulho no meu ativismo.
Assumir publicamente que se é ex-deprimida e ansiosa ocasional é ainda um grande tabu e de uma coragem singular. O que a levou a falar sobre a sua condição?
Alguém tem de falar despudorada, pedagógica e empaticamente sobre as doenças mentais. Somos 2 mil milhões mundo afora, que têm ou já as tiveram (acho até que somos mais), num Mundo de 8 mil milhões de preconceituosos. O conhecimento e o diálogo são as melhores ferramentas de combate ao estigma. É, também, a minha forma de reciclar a minha experiência e transformar o sofrimento de anos em insight, em positivo.
O estigma e o preconceito são ainda um combustível para as doenças mentais?
São “o” combustível, fatores tão determinantes de doença mental quanto a neuroquímica e a hereditariedade. Por várias razões: são a causa da iliteracia em saúde mental, de inação na procura de tratamento, do desamparo em que se vivem estas doenças e do miserável desinvestimento público na saúde mental.
Depois de estarmos no caos e nos reerguermos, nunca mais voltamos a ser iguais?
Saímos sempre diferentes daquilo que vivemos, bom ou mau. “É preciso muito caos interior para parir uma estrela que dance”, uma frase de Nietzsche que se tornou no meu lema.
50% dos transtornos de saúde mental instalam-se até aos 14 anos, e 75% até aos 24 anos. Ou seja, metade dos adultos com doenças mentais ficou doente na infância, e 2/3 na adolescência e início dos vintes, conclusões da OMS. Nesta causa da saúde mental, o que acha que nos está a escapar para saber cuidar do assunto?
Faço parte desses 50%, e está a escapar-nos quase tudo. Estamos no olho do furacão, a comportar-nos como se de uma leve brisa se tratasse: 10% das crianças e jovens entre os 5 e os 16 anos têm um problema mental clinicamente diagnosticável – 70% não recebe qualquer tratamento, ou tratamento atempado. A doença instalada é muitíssimo mais difícil de suplantar. A Geração Z (dos 10 aos 25 anos) é 23,5% da população mundial, e de uma extrema vulnerabilidade mental – o suicídio é a 2.ª causa de morte dos zoomers. De que é que estamos à espera? Para educar crianças e jovens sem estigma e preconceito, dar-lhes ferramentas de gestão emocional desde pequeninos e mostrar-lhes que ter um problema de saúde mental não é anormal. Onde? Em casa e na escola, junto dos seus pares e através do exemplo: se ignorarmos a nossa saúde mental e não nos batermos por um sistema de saúde mental público e efetivo, como é que vamos quebrar este ciclo?
Depois de tudo o que passou, quais são as suas principais aprendizagens?
Nunca julgar o livro pela capa, assumir a minha vulnerabilidade sem estigma e pôr o dedo insistentemente nesta ferida coletiva, com empatia, mas sinceridade, na esperança que um dia sare.
A vulnerabilidade faz parte da condição humana. Como pode um líder mostrar-se sensível e frágil sem perder o foco e capacidade de liderar?
Vulnerabilidade não é fragilidade, e expô-la é enorme sinal de força. Um líder que a assume inspira, e no momento em que o propósito é essencial para a captação e retenção de talento, haverá melhor liderança do que a inspiradora e empática?
As organizações não precisam de super-heróis, precisam de líderes autênticos, que gerem identificação nos colaboradores, promovam a comunicação aberta e a resiliência emocional da sua equipa. Que reconheçam em si a importância da saúde mental – o primeiro passo para uma cultura organizacional saudável, e não de mera sobrevivência.
Qual é que deve ser o papel de um líder na promoção da saúde mental nas organizações?
Central e essencial. Os bons líderes têm de psicanalisar a sua liderança, procurar respostas para este screening preliminar e definir o nível de compromisso e investimento da sua organização: (1) Quantos colaboradores estão a enfrentar problemas de saúde mental? (2) É um problema endógeno (decorrente da dinâmica de trabalho, como o agora célebre burnout), exógeno (relacionado com a vida pessoal) à sua organização – ou ambos? (3) Quanto custa à sua organização a falta de saúde mental dos colaboradores, instalada e potencial? (4) A sua organização tem um Programa de Prevenção e Promoção de Bem-estar e Saúde Mental, ou medidas avulsas? Medem o impacto destas ações? O investimento empresarial em saúde mental é altamente reprodutivo.
Quizz a Marta Rebelo, Consultora na a.normal
O que faz quando tem tempo livre? Tantas coisas: de “variações de nada” aos livros, cinema, petiscadas, caminhadas, ver futebol (patologicamente Benfiquista e fã do Man City), e estar o mais possível com a minha família nuclear.
Livros da sua vida: O poema Um Adeus Português de Alexandre O’Neill, e Os Maias de Eça de Queiróz, relido umas 16 vezes.
Podcasts: A Beleza das Pequenas Coisas do Bernardo Mendonça, o Fala com Ela da Inês Meneses, o Desta para Melhor do Diogo Faro e o Ponto de Desencontro do Hugo van der Ding. Sobre saúde mental, The Hilarious World of Depression de John Moe.
Viagens de sonho: Não são todas? “Viajar é fatal para o preconceito, a intolerância e as ideias limitadas” (Mark Twain) – três coisas que abomino. Nessa perspetiva, a ultraconsciente Berlim foi a cidade que mais me mudou, a virada no Rio de Janeiro a viagem mais energizante.
Líder que a inspira: Winston Churchill, que em muito nos livrou de ditadura e meia e contribuiu para a destigmatização da doença mental, ao abrir caminho ao debate sobre a sua “black dog”.
Esta entrevista faz parte da rubrica “Líderes em Destaque”, publicada na edição de outono da revista Líder. Subscreva a Líder aqui.