A rua estava cortada. Carros pretos, vidros escuros, motores a roncar em surdina. Agentes da PSP de colete fluorescente marcavam território. Havia protocolo, havia poder, e havia também um daqueles silêncios de bairro onde todos sabem que algo está a acontecer. Mas foi quando as turbinas do encontro começaram a girar que o silêncio se fez por outro motivo.
O Presidente de Cabo Verde, José Maria Neves, chegou à Damaia com honras de Estado e olhos bem abertos. Visitava a Windcredible, startup portuguesa nascida numa garagem e moldada com vento, plástico reciclado e vontade. Aquilo que começou com duas cabeças a tentarem poupar na conta da luz dentro de um quartel da GNR — Filipe Fernandes e António Santos — transformou-se numa máquina com ambição: devolver energia às pessoas, com o mínimo ruído e o máximo impacto.
Filipe explica: «Queremos mudar a forma como a energia é produzida. Reduzir a dependência dos combustíveis fósseis. Transformar consumidores em produtores». E há ali qualquer coisa de evangelho eléctrico nestas palavras, como se a turbina que gira sem ruído fosse, afinal, também ela uma prece.
Para se tornar realidade, usaram impressoras 3D que conseguissem imprimir as pás de turbinas e reaproveitaram motores de trotinetes eléctricas. O que começou como um improviso resultou num protótipo. E o protótipo ganhou força, tecnologia e ambição com a chegada de novos elementos à equipa, entre os quais o engenheiro mecânico Marvim Fernandes e o doutorado em mecatrónica Nelson Batista.
Hoje, a startup já está em fase de piloto e quer entrar no mercado português em 2025, mas o plano é maior. Começar cá, seguir para o mundo. Países nórdicos, costa leste dos EUA, Brasil. O sonho? Uma turbina por telhado. Um vento por casa. Um sopro por comunidade.

Cresceu na Cova da Moura e hoje sopra futuro
Quem ali estava, no entanto, percebia logo que esta história não é só feita de tecnologias e mercados. António Santos, co-fundador da startup, nasceu ali ao lado, no bairro da Cova da Moura. Passou pela GNR, aprendeu a língua dos cabos e das pás de turbina, e hoje regressa com um projeto de olhos postos no céu.
«Energia é qualidade de vida», disse com a certeza de quem já viveu dias mais escuros. Mas há mais: «Pode ter um papel comunitário fundamental, sobretudo nas zonas onde mais se precisa». Falava do rácio por metro quadrado, sim, mas também da dignidade, do calor, da luz que não se corta.
Contou depois uma história. Numa visita a Cabo Verde, a propósito de uma Leadership Summit, foram testar um protótipo. Levaram-no numa pick-up de caixa aberta. Travaram mais forte e uma das pás partiu-se. Urgência, aflição — mas apareceu gente a ajudar. Gente com sorrisos nos olhos. E foi aí que António viu, com clareza, o lado social do projeto. O vento ali não move só turbinas. Move vidas.
Quando o Estado é homem e sorri
O Presidente de Cabo Verde José Maria Neves escutava. Olhava. Tocava na máquina com a curiosidade de quem entende que há mais na ciência do que números e equações. Brincou com a origem do projeto: «Talvez vos arranje uma garagem também em Cabo Verde», disse entre sorrisos. Mas depois a conversa ficou mais funda. Falou das raízes, do orgulho, da necessidade de dar luz a quem dela foi apagado.
«Recordo-me quando visitei Portugal há uns anos, logo depois do acontecimento de um arrastão numa praia. Entre ministros, eu realçava outra coisa. A medalha conquistada por Nuno Delgado. Há pessoas boas e más em todo o lado. Temos de realçar aquelas situações que iluminam caminho.»
E o caminho seguiu. Depois da Damaia, José Maria Neves entrou na Cova da Moura. Foi às escolas, falou com os miúdos, sentiu o bairro de dentro. Não era só uma visita diplomática. Era um regresso, um abraço político que vinha da infância para o futuro, de África para Lisboa, do betão para a turbina.
O que gira não é só a pá
Num mundo onde tanta energia se perde em discursos que não acendem nada, ali estava uma máquina que gira em silêncio. Que não precisa de vento político para se mover. Só precisa de vontade, técnica, comunidade — e, talvez, uma garagem.
Assim, a Windcredible não está apenas a fabricar turbinas. Está a construir outra ideia de planeta: mais justo, mais limpo, mais descentralizado. Um mundo onde o futuro não depende só do preço da energia que poucos controlam, mas da quantidade de vento que passa no telhado das casas das pessoas.
E sim, houve carros blindados, houve fardas e a cerimonia do costume. Mas a notícia estava ali, em pás de plástico reciclado e motores de trotinete, a girar no meio da Damaia. E, agora, talvez ninguém as pare.