Gerir um negócio na área saúde destaca-se por vários desafios em comparação com outros setores. O fator humano é crucial e existe uma sensibilidade acrescida no contacto com os consumidores, além da robusta regulamentação envolvida nestes negócios. Não é novidade que Portugal tem atravessado uma crise no que ao sistema público de saúde diz respeito, pelo que a reflexão sobre a gestão dos mesmo se impõe, mais do que nunca.
Foi essa necessidade que levou Ana Gonçalves a criar a Academia de Negócios de Saúde, destinada e melhorar empreendimentos nesta área. A ideia surgiu em 2020, a par do covid-19, com o objetivo de ajudar outros profissionais de saúde a manter os seus negócios, numa altura em que tudo colapsava.
Licenciada em Fisioterapia pela Escola Superior de Saúde Atlântica, concluiu em 2018 o Executive Master em Gestão de Serviços de Saúde no INDEG – ISCTE Executive Education, onde recebeu o prémio de melhor aluna. Iniciou o seu percurso como estagiária numa clínica de fisioterapia e, aos 24 anos, comprou a clínica, dando os primeiros passos como empreendedora. Mais tarde, para aprofundar o seu conhecimento, estudou gestão. Além da Academia, é também CEO da Clínica Fisiotorres e do espaço Saúde Física Torres Vedras e Silveira, liderando mais de 130 colaboradores.
À Líder, contou mais sobre o seu percurso e deixou uma reflexão sobre o que falta aos negócios da saúde em Portugal.
O que a motivou a enveredar por este setor e criar a Academia Negócios de Saúde?
A pandemia veio mudar muitos paradigmas e na área da saúde não foi diferente. Com a Covid-19, muitas clínicas foram obrigadas a fechar e, na altura, recebia muitos pedidos de ajuda de colegas de profissão para descomplicar os decretos de lei que iam saindo na altura. Percebi que tinha ali um “superpoder” de descomplicar e, com isso, ajudar as clínicas a conseguirem manter os postos de trabalho.
Lancei um ebook intitulado ‘Melhores estratégias para a sua clínica perante a Covid-19’, que rapidamente teve centenas de downloads. A partir daí, surgiu a Academia. Percebi que gostava muito de ajudar os outros a terem negócios de sucesso. Estudei muito, tirei várias formações e mestrados e criei o meu próprio método de gestão de clínicas.
Ao longo destes cinco anos de Academia Negócios de Saúde, já ajudamos mais de dois mil profissionais de saúde a terem um negócio que não depende 100% deles e a recuperarem o seu tempo em família.
Como se destaca a liderança de negócios da área da saúde comparativamente a outros setores?
A liderança na área da saúde tem particularidades que a diferenciam de outros setores, principalmente pela complexidade e sensibilidade do serviço prestado. Um líder na área da saúde precisa de conciliar a gestão eficiente da clínica com a excelência no atendimento ao cliente. Diferente de outros setores, onde o foco pode ser apenas no resultado financeiro, na saúde há um compromisso ético e humano essencial. Os negócios da área da saúde operam sob regulamentações rigorosas que impactam diretamente a forma de liderar e tomar decisões. A necessidade de seguir normas de saúde, privacidade de dados (como o Regulamento Geral de Proteção de Dados, ou RGPD) e protocolos clínicos torna a gestão mais desafiadora. Além disso, a liderança na saúde envolve médicos, enfermeiros, rececionistas, gestores e técnicos. Cada um com desafios e expectativas diferentes.
Há ainda o fator experiência do cliente. Noutros setores, a experiência do cliente pode ser baseada apenas no preço ou conveniência, no entanto, na saúde, a confiança e a credibilidade são fatores decisivos na escolha de um serviço. A reputação de um profissional de saúde influencia diretamente o sucesso da clínica ou consultório, tornando a marca pessoal um ativo valioso. Enquanto noutros setores a marca da empresa muitas vezes se sobrepõe à do líder, na saúde, o profissional muitas vezes é a marca.
Existe um empreendedorismo ativo nos negócios de saúde em Portugal? Como caracteriza o panorama nacional versus europeu?
Tendo em conta as limitações do Sistema Nacional de Saúde (SNS), há uma crescente procura por clínicas privadas, telemedicina e serviços diferenciados. Portugal tem um ecossistema de empreendedorismo na saúde que está em expansão, mas ainda enfrenta desafios como financiamento, burocracia e resistência à inovação. Comparando ao panorama europeu, há espaço para crescer, principalmente na digitalização, investimento em healthtechs e maior integração entre os setores público e privado.
O setor privado e o setor público podem trabalhar de forma mais integrada? Como vê o papel das parcerias público-privadas no empreendedorismo deste setor?
Acredito que este seja o caminho. Aliás, duas das minhas clínicas têm convenção com o Sistema Nacional de Saúde e percebo a mais-valia para a comunidade, profissionais e stakeholders.
Considero que as práticas de gestão do setor privada podem e devem ser adotadas pelo setor público, até porque muitos dos erros que se cometem em termos de ineficiência e gestão financeira devem-se a práticas muito conservadoras e antigas face à adaptação que o setor privado tem, com uma gestão de proximidade inovadora e flexível. Em termos de otimização de recursos, de uma liderança mais próxima, do foco na experiência do cliente, acho que o público pode aprender com o privado.
Olhando para a gestão do setor da saúde em Portugal atualmente, o que é preciso mudar para colmatar as várias lacunas do Sistema Nacional de Saúde?
Destaco três pontos essenciais: melhorar as condições de trabalho, por exemplo, evitando a sobrecarga e garantindo planos de carreira atrativos; estabelecer parcerias público-privadas estratégicas, integrando melhor os serviços privados, de forma a reduzir as listas de espera sem comprometer o acesso universal; e digitalizar os processos, investindo em sistemas integrados que reduzam burocracia, tempos de espera e erros administrativos.
O que falta às lideranças da saúde em Portugal?
Falta uma abordagem mais empreendedora e inovadora para modernizar processos e adotar novas tecnologias e, em muitos casos, formação. Muitos gestores na área da saúde têm um background clínico, mas pouca formação em gestão e liderança. Ainda há pouca cultura de análise de indicadores de desempenho para fundamentar decisões estratégicas.
De que forma é que a sua luta contra o cancro moldou a sua perspetiva de vida? Que ensinamentos/filosofia leva para o seu trabalho e cursos da Academia?
A noção real de que a vida é finita. Na correria do dia a dia muitas vezes esquecemos, vivemos muito para o futuro: “quando me reformar isto”, “qualquer dia vou ter tempo”. Quando ficamos doentes percebemos que o futuro é agora e há coisas que não podemos adiar, como o tempo de cuidar de mim, estar com a minha família e filhos. Há inegociáveis depois desse momento da minha vida que me fizeram perceber que não quero entrar num padrão em que dou a vida como garantida.
Não vale a pena faturar milhões à custa da nossa vida e saúde. Foi quando adoeci que pensei realmente no que vale a pena. Ao mesmo tempo, foi também um ponto de viragem muito grande nos meus negócios. Foi o que me fez reorganizar as minhas empresas, delegar, estudar e desenvolver as minhas competências de gestão. E no fundo a academia surge por isto, porque acredito que para termos um negócio não temos que depender 100% dele. É nisso que acredito. É isso que defendo e que tento transmitir aos empreendedores que entram na academia.
Quais são os desafios que se apresentam para o setor dos negócios de saúde nos próximos anos?
Acredito que o maior desafio dos próximos tempos, e que já se está a sentir, é mesmo a atração e retenção de profissionais de saúde. A falta de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e outros profissionais de saúde está a aumentar. As clínicas terão de investir mais na retenção de talento, oferecendo melhores condições de trabalho, planos de carreira e formação contínua. Além disso, é fundamental ter uma estratégia de captação ativa de colaboradores.
Encararmos o nosso colaborador como um cliente interno e, da mesma forma que definimos estratégias para atrair clientes, termos também estratégias para atrair colaboradores. É importante, também, olharmos para os nossos atuais colaboradores e fazê-los sentirem-se especiais, cuidarmos deles, ajudar a que se desenvolvam pessoal e profissionalmente. Como costumo dizer: «criar um jardim que seja apetecível para as borboletas (colaboradores) quererem ficar».