Opiniões
Nao se combate o sistema destruindo a democracia
Estamos a atravessar um momento obscuro na história recente da nossa democracia. Não se trata de uma derrota política passageira, nem de um ciclo eleitoral como tantos outros. Trata-se de algo muito mais profundo e perigoso: a legitimação nas urnas de ideias que, há pouco tempo, seriam impensáveis num Estado de Direito moderno. Disfarçada de protesto, alimentada pelo descontentamento legítimo de muitos, a extrema-direita conseguiu tornar aceitável o inaceitável, normalizar o ódio, relativizar o preconceito, e abrir caminho a um retrocesso civilizacional com consequências imprevisíveis.
Não se pode olhar para estes resultados com ingenuidade ou neutralidade. Um partido que constrói a sua força com base no racismo, no sexismo, na xenofobia, no ataque à imprensa livre e na desvalorização das instituições democráticas não representa uma alternativa — representa uma ameaça. E quem afirma que este é apenas um voto de protesto está a ignorar a gravidade daquilo que está verdadeiramente em jogo. Porque não há voto de protesto quando esse voto reforça o discurso do ódio. Há, sim, uma escolha — consciente ou não — de permitir que esse discurso ganhe palco, força, influência e poder.
É urgente dizê-lo sem rodeios: este não é um fenómeno inofensivo. O crescimento da extrema-direita é um ataque frontal às conquistas que fizeram de Portugal um país mais livre, mais justo e mais humano. Não está em causa apenas a retórica agressiva ou populista. Está em causa o próprio contrato social que temos vindo a construir — um contrato baseado na igualdade, no respeito pela diferença, na proteção das liberdades fundamentais, e na recusa do autoritarismo.
A História já nos mostrou, vezes demais, como tudo isto começa. Começa com frases simples. Com promessas de ordem. Com a invenção de inimigos internos. Com a ideia de que há um “povo verdadeiro” e depois os “outros” — os que não pertencem, os que devem ser silenciados, marginalizados, expulsos ou esquecidos. E quando esse discurso ganha votos, ganha legitimidade. Ganha espaço nos debates, nas escolas, nos cafés, nas redes sociais. Ganha, sobretudo, o direito de ser levado a sério. E é nesse momento que a democracia começa a ceder.
Dizer que “são todos iguais” ou que “é preciso mudar” não pode justificar entregar o poder a quem despreza os princípios mais básicos da convivência democrática. Os partidos tradicionais podem e devem ser responsabilizados pelos seus erros. Mas castigar o sistema oferecendo força a quem o quer destruir é um erro que a sociedade pagará caro — sobretudo os mais vulneráveis, os mais invisíveis, os que já hoje vivem nos limites da dignidade.
Estaremos mesmo dispostos a aceitar um país onde os direitos das mulheres são desvalorizados, onde se insinua que há cidadãos a mais, onde o insulto se confunde com opinião, e onde a diferença é tratada como ameaça? Estaremos dispostos a abdicar do esforço coletivo de inclusão, de justiça e de igualdade, para dar lugar a uma lógica de exclusão, de medo e de ressentimento? Queremos, de facto, deixar aos nossos filhos um país mais pobre em direitos, mais cego em empatia e mais brutal na linguagem e na ação ?
Esta não é apenas uma questão política. É uma questão ética, moral, humana. O que está a ser posto em causa não são apenas programas ou orçamentos — é o próprio valor da dignidade humana. E quando se começa a medir essa dignidade em função da origem, do género, da orientação sexual, da cor da pele ou do sotaque, é porque já se ultrapassaram todos os limites.
A resposta a este avanço tem de ser clara, firme e coletiva. A defesa da democracia não pode ficar nas mãos de meia dúzia de vozes isoladas. Cada um de nós tem a responsabilidade de recusar o silêncio, de enfrentar a normalização do ódio, de proteger o espaço público da mentira e da violência simbólica. É tempo de reagir, de reunir forças, de construir alianças entre quem acredita na liberdade, na justiça e na pluralidade.
Não há neutralidade possível quando o que está em causa é o futuro civilizacional de um país e de uma sociedade. Ou se está do lado da democracia, ou se contribui para o seu declínio. É este o tempo da escolha. E cada palavra, cada voto, cada silêncio, cada omissão será recordado. Porque a história não julga apenas os que cometem os abusos — julga também os que assistiram e nada fizeram.
Ainda há tempo. Mas não muito.
Miguel Cardoso,
Coordenador Nacional Black Europeans Portugal e Fundador do Colectivo Vozes Descoloniais
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Jun 20, 2025