Cristina Duarte, subsecretária-geral das Nações Unidas e Conselheira Especial para os Assuntos Africanos junto do Secretário-Geral da ONU, não mediu palavras na Leadership Summit Cabo Verde. Na sua intervenção sob o mote ‘Lideranças, Democracia e Governance: A Construção de Estados Africanos Efetivos’, falou de forma crua sobre os desafios estruturais que travam o continente. «A palavra ‘efetivo’ foi usada intencionalmente», sublinhou logo à partida sobre o título da sua talk.
A antiga ministra das Finanças cabo-verdiana alertou que discutir liderança em África exige compreender a sua complexidade cultural, histórica e política. «Liderança na Ásia não é igual à da Europa, que por sua vez não é igual à da América Latina, nem da África. São, permitam-me, animais completamente diferentes», afirmou, defendendo que modelos importados do Ocidente nem sempre se adequam ao contexto africano.
Para ela, «liderança não existe em abstrato»— deve ter propósito. E esse propósito, no caso africano, deve começar por reconhecer e combater o que chamou de triplo paradoxo, um conceito que tem vindo a desenvolver nos últimos anos em Nova Iorque.
O triplo paradoxo africano
«A África foi capturada por três paradoxos nos últimos 60 anos», afirmou, recusando explicações simplistas como a pandemia de Covid-19 ou a guerra na Ucrânia. Para Cristina Duarte, o verdadeiro obstáculo ao desenvolvimento reside na falência da governação e na ausência efetiva do Estado em muitos países do continente.
«O conflito e a instabilidade resultam de um défice de desenvolvimento, e não o contrário», defendeu. E lançou os números sem hesitações: 100 milhões de crianças fora da escola, 600 milhões de pessoas sem acesso à eletricidade e 300 milhões em situação de pobreza extrema. «Com estes números, não me digam que houve desenvolvimento.»
Segundo a conselheira da ONU, os fatores internos — como a má governação, instituições frágeis e a falta de investimento em capital humano — somam-se aos fatores externos: «A África continua a ser um palco de forte competição geopolítica pelo controlo de recursos e ativos. 60% dos conflitos derivam daí.»
Cabo Verde como exceção numa África rica… mas pobre
Num discurso crítico mas ponderado, Cristina Duarte não deixou de destacar o caso de Cabo Verde como exemplo positivo. Desde a independência, em 1975, o país tem investido consistentemente em capital humano, tanto em regimes de partido único como de multipartidarismo. «Independentemente da força política no poder, foi uma constante.»
O primeiro dos três paradoxos expostos é o financeiro. «A África é rica em recursos naturais e também em recursos financeiros. Perde entre 500 a 600 mil milhões de dólares por ano. Perdemos em 2023, em 2024, perderemos em 2025 e em 2026.» E acrescentou: «Este mesmo continente que perde tudo isto, mendiga por ajuda pública ao desenvolvimento e perdão da dívida.»
«Se perde, é porque gerou. Gerou e perdeu. Só se perde o que se tem», afirmou, lembrando que o problema não é a falta de riqueza, mas sim o que se faz com ela.
Esse paradoxo financeiro alimenta o segundo: o energético. A África, rica em recursos como sol, vento, hidroeletricidade e minerais críticos, tem 600 milhões de pessoas sem acesso à eletricidade. «Sem energia não há vida, não há agricultura, não há sistemas alimentares. A África podia alimentar-se a si própria — e boa parte do mundo.»
África e o mundo
A cadeia conceptual que Cristina Duarte desenhou é clara: défice de desenvolvimento leva a instabilidade, que por sua vez impede o progresso. «Num mundo interconectado, nenhum líder pode afirmar que lidera com eficácia se não compreender e dominar as regras do sistema global.»
A construção de Estados africanos efetivos, na sua ótica, exige governação sólida, soberania estratégica e capacidade de navegar o multilateralismo com equilíbrio. «Soberanias fortes alimentam correlações de forças mais equilibradas, essenciais para o sistema multilateral funcionar.»
Numa comparação internacional revela o absurdo: em 2019, a União Europeia consumiu três vezes mais energia do que toda a África, apesar de ter pouco mais de um terço da população. Mais: França e Alemanha, em conjunto, consumiram mais energia do que todo o continente africano. «Há aqui um buraco. E este buraco não pode ser preenchido colocando a África num casaco estreito de energia verde.».
A economista não tem dúvidas: «Não somos os poluidores. Com todo o respeito, não somos expelidores.» A frase, dita com firmeza, marca o ponto central da sua intervenção. A contribuição do gás natural africano para as emissões globais de CO2 no setor elétrico é de apenas 0,62%. «Num continente que já é verde à partida?», questiona. O desequilíbrio é evidente.
O direito à escolha e o peso do ponto de partida
A posição é clara: África tem o direito de definir o seu próprio energy mix, colocando todas as opções energéticas em cima da mesa. «O destino é o mesmo, um planeta verde. Mas pedimos à comunidade internacional: reconheçam que o nosso ponto de partida é diferente.» O tom sobe, mas a análise mantém-se rigorosa: a transição energética imposta ignora desigualdades estruturais.
É o que ela chama de «paradoxo alimentar e energético». A solução? «As lideranças africanas têm que quebrar este paradoxo. Têm que mudar o modelo de financiamento para o desenvolvimento.» Hoje, África já financia mais de 75% do seu próprio desenvolvimento, mas continua presa à dependência da ajuda pública internacional.
Estados ausentes, territórios sem governo
O debate avança para uma questão estrutural: a ausência do Estado. Não é uma ausência apenas teórica ou ideológica, mas concreta. «Ou não está, ou está e não serve.» O resultado? Instabilidade, insegurança e erosão do contrato social. Em várias regiões, o Estado foi substituído por atores não estatais — muitas vezes grupos armados ou terroristas — que prestam os chamados «public goods»: segurança, educação, água, até mesmo justiça. Uma contradição que alimenta ciclos viciosos.
O diagnóstico é direto: «Durante 30 anos, as teorias neoliberais empurraram o Estado para fora do jogo. Agora pedem previsibilidade, regulação, administração pública. Mas o Estado foi destruído. Isto é uma contradição.»
Segundo os dados do Afrobarómetro, a confiança dos cidadãos nas instituições públicas continua a cair. Apenas líderes religiosos, militares e autoridades tradicionais mantêm alguma credibilidade. Em contraste, os representantes eleitos nas instituições formais são os que geram menos confiança. «Este é o epicentro das crises: a profunda ilusão da confiança entre cidadãos e instituições.»
Liderança precisa de mais do que voto
A resposta passa por uma nova forma de liderança. Não basta ser tecnicamente competente: «Sem integridade pessoal, não há mobilização social possível.» A credibilidade exige legitimidade, e aqui a economista distingue dois conceitos: a legitimidade eleitoral — conferida pelo voto — e a legitimidade orgânica, que só se constrói através de ações coerentes, valores e resultados.
«O voto não é uma fonte permanente de legitimidade. Ele dá uma licença legal, mas não confere legitimidade orgânica.» Citando Michael Williams, sublinha que a legitimidade orgânica implica «fazer o que é certo para a situação e para as pessoas envolvidas, com coerência de princípios.»
Outro alerta: a democracia política, nos moldes importados, está esgotada. Reduziu a cidadania ao ato de votar. «Criámos uma cidadania acidental. Em vez de representar, os eleitos substituem o eleitor.» O modelo de substituição mata o princípio da representatividade e bloqueia qualquer reforma estrutural.
É nesta lógica que a oradora afirma: «Não se pode exercer liderança sem credibilidade. E não há credibilidade sem legitimidade orgânica.» A legitimidade verdadeira exige democracia económica — não apenas liberdade de expressão, mas redistribuição justa de recursos.
A falência também é ocidental
O problema, sublinha, não é exclusivo do continente africano. «isto não é só um desafio africano. É também um desafio em países desenvolvidos e maduros.» Exemplo? Nos Estados Unidos, entre os 90% mais pobres da população, a renda cresceu menos de 0,5%, enquanto a produtividade do trabalho aumentou 240%. Em países europeus, a tendência é semelhante: erosão de rendimento disponível e concentração da riqueza.
A conclusão é implacável: «Perda de controlo é igual a perda de direção.» A África enfrenta um triplo paradoxo — energético, alimentar e de legitimidade — que impede o continente de se posicionar estrategicamente no sistema global. A liderança africana precisa de romper com a invisibilidade estratégica, compreender as regras do jogo e agir como protagonista.
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