Inclusão e diversidade são termos sobejamente conhecidos no mundo empresarial, sendo mesmo regra na maioria dos departamentos de gestão de pessoas. Ainda assim, há um grupo de pessoas que ainda encontra dificuldades nos processos de recrutamento: os trabalhadores neurodivergentes.
O Programa de Neurodiversidade foi criado em 2021 – através de uma parceria entre a Critical Software e a Specialisterne – para colmatar este flagelo. Várias entidades empregadoras, como a Critical TechWorks e a NOS, juntaram-se à iniciativa, ampliando o seu impacto e número de profissionais autistas integrados. Atualmente, 28 profissionais estão distribuídos por vários escritórios e unidades de negócio das entidades empregadoras.
Em 2024, esta iniciativa foi o único projeto português distinguido a nível mundial pelo Zero Project, que premeia projetos de todo o mundo pensados para quebrar barreiras à inclusão de pessoas com deficiência, ao nível da educação, empregabilidade e vida independente.
Catarina Fonseca, parte das equipas de People e Sustainability da Critical Software e Coordenadora do Programa de Neurodiversidade, conta à Líder os planos para a próxima edição – cujas candidaturas acabam no dia 4 de julho – e a importância da inclusão de neurodivergentes no mundo do trabalho.
Qual é a importância de existirem culturas corporativas mais neuroinclusivas no setor tecnológico?
Há um lema simples que é «juntos somos mais fortes». E, de facto, em empresas como a Critical Software, que tem projetos muito exigentes e complexos para clientes internacionais, é impossível responder aos desafios do dia-a-dia com equipas iguais, com pessoas que pensem da mesma forma, com o mesmo tipo de formação académica e background.
Para nós, a diversidade não é uma opção, mas sim uma vantagem competitiva. É a única forma de conseguirmos estar no mercado, crescer e responder aos enormes desafios dos nossos clientes. Já temos vindo a dar alguns passos estruturados para promover de forma ativa essa diversidade, que tem de vir sempre muito associada à equidade e inclusão, para que de facto resulte, e de uma forma muito consciente decidimos criar este programa de talento. O objetivo do Programa de Neurodiversidade é recrutarmos para as nossas equipas pessoas que acrescentem valor para que os nossos projetos fiquem mais fortes, portanto nós decidimos ativamente criar este programa de neurodiversidade para que, nas mais de 100 pessoas que recrutamos todos os anos, garantidamente algumas tenham um estilo cognitivo diferente.
Queríamos garantir que a nossa força de trabalho não é toda neurotípica, tendo a certeza que o nosso processo de recrutamento é inclusivo, de forma que pessoas neurodiversas (como pessoas autistas) possam ser bem-sucedidas na fase de seleção e efetivamente integrar as nossas equipas e projetos. Estamos muito convictos de que é fundamental para a nossa atividade, para o nosso negócio.
É um processo de seleção que demora muito mais tempo que um processo regular, há várias oportunidades de interação com a equipa para podermos avaliar de forma justa o potencial dos candidatos.
Não é uma integração meramente solidária e socialmente responsável, é uma integração com base no contributo, mérito e talento.
Como está o setor português nesta matéria?
Ora, nós começámos o programa em 2021 e já havia algumas iniciativas de inclusão de pessoas autistas noutras áreas, mercados e setores. Em Portugal, efetivamente fomos pioneiros. Nós queremos recrutar, formar e integrar pessoas autistas em contextos de engenharia de software, que podem ser extremamente exigentes.
Sempre tivemos esta ambição, mas não queremos de todo um programa só para alimentar a base de talento da Critical Software. O mais importante é começar e superar os desafios, pois vale muito a pena trabalharmos todos em conjunto. Começámos sozinhos em 2021, mas temos tido o papel de convidar outras empresas tecnológicas para se juntarem a nós.
E, no fundo, estamos aqui a fazer um push do movimento em Portugal, porque não há concorrência nesta matéria. Se formos mais empresas com o mesmo movimento de empregar pessoas neurodiversas, conseguiremos criar mais postos de trabalho e integrar mais pessoas.
Quanto mais empresas formos a criar empregos para pessoas neurodiversas, mais impacto conseguimos criar em conjunto
Neste momento, o Programa tem quatro empresas empregadoras associadas e, na Critical Software, já temos cerca de 15 profissionais autistas contratados através desta iniciativa. Integramos ao todo 28 profissionais em várias empresas, e almejamos em 2025 recrutar e integrar mais 10 pessoas. Esta é a quinta edição do programa e a cada ano temos tido cerca de 100 candidaturas.
Orgulho-me mesmo muito de termos outros profissionais que estão noutras empresas que, entretanto, aderiram à iniciativa, igualmente felizes, bem integrados e a fazer um trabalho incrível, mostrando que a neuroinclusão vale muito a pena.
Quais são os desafios que se apresentam nesta inclusão?
É um desafio, desde logo porque queremos uma inclusão verdadeira e não para cumprir uma lei de quotas. Compreendo que a lei das quotas seja um mal necessário, mas, quando nós queremos uma inclusão verdadeira, é efetivamente muito necessário que as pessoas tenham os conhecimentos de programação ou mais técnicos.
Uma decisão que tomámos logo desde o início do programa foi não exigir curso superior na área. Isto porque conhecemos vários candidatos incríveis, com muitos conhecimentos, mas que não tinham o curso superior concluído porque, devido à sua condição e às vezes a um ensino superior muito fechado e tradicional, não conseguiram acabar com sucesso as fases de avaliação.
É um desafio e nós estamos ativamente a pensar em formas de conseguir que estes candidatos adquiram as competências necessárias. Já temos parcerias, nomeadamente com a Lisboa 42, com escolas mais inclusivas, menos tradicionais e com um modelo de ensino mais aberto. Aquilo que tentamos fazer é que os candidatos procurem as competências que faltam para poderem depois ingressar na empresa.
Entrar através do Programa de Neurodiversidade ou noutra das empresas não é mais fácil do que um processo normal. Não se trata de facilitismo, mas sim de adaptarmos e removermos algumas barreiras que os candidatos autistas têm.
Que desafios apresentam as empresas e recrutadores? Ainda existem estigmas?
Claro que sim. Neste programa em particular, nós temos a sorte – e foi também uma decisão que tomámos de início – de ter uma equipa de psicólogos que apoia as empresas e os candidatos autistas neste processo de seleção, formação e integração.
E isso ajuda muito, porque nós vamos ali desconstruir o estigma. À medida que acontece o processo de recrutamento, que é bastante longo, as empresas têm formação sobre o que é o autismo, o que é a neurodiversidade, que tipo de comportamento é que as pessoas podem ter, como é que se deve interpretar certos comportamentos.
Também falamos de algo que é muito específico, mas muito relevante, que é como é que o autismo se vai manifestar no local de trabalho. Não estamos a falar num contexto social ou familiar, mas sim no dia-a-dia, nas reuniões, no momento de passagem das tarefas, de avaliação de desempenho e, portanto, vamos formando as nossas equipas. Sobretudo, tentar evitar problemas de comunicação, que muitas vezes afastam estas pessoas do mercado de trabalho. Há muitas questões relacionadas com a integração destes profissionais que são questões de falhas na comunicação. Por não ser feita uma comunicação de parte a parte, eficaz.
Os psicólogos também acompanham a pessoa autista e as equipas que a acolhem, oferecendo estratégias muito concretas no dia-a-dia. É uma integração acompanhada e altamente especializada, direcionada para estes maiores desafios que podem apresentar os colegas autistas.
Eu queria deixar a mensagem de que a primeira etapa é dar este passo, decidir contratar pessoas neurodiversas, mas que depois é preciso efetivamente garantir que o processo é inclusivo. Não dá para fazer uma ou duas entrevistas, uma pessoa autista vai estar de tal forma ansiosa que não vai conseguir mostrar o seu potencial de contributo para a empresa.
Não queremos só que a pessoa chegue à empresa e pronto, temos que garantir que continua com este acompanhamento na fase de integração para que seja, de facto, a longo prazo.
Da perspetiva dos gestores, ouvimos dizer que este programa abre espaço para aceitarmos e valorizarmos a diferença. Começámos por falar em neurodiversidade e autismo, mas, de repente, ficámos muito mais sensíveis para outro tipo de diferenças que os líderes têm de gerir no seu dia-a-dia. Por exemplo, estes colegas tipicamente têm uma performance, um desempenho muito bom, muito sólido, mas não é logo numa fase inicial. Existe uma curva de aprendizagem, em parte semelhante a juniors ou recém-licenciados.
Este processo vai contaminando positivamente esta tolerância, esta abertura, e vai criando um espaço de trabalho verdadeiramente mais empático, mais inclusivo, em que todos temos o nosso espaço para poder evoluir e dar o nosso contributo.
Nas várias edições do Programa de Neurodiversidade, como tem sido a evolução de candidatos?
A primeira edição foi muito difícil porque sentimos que estávamos a abrir uma janela de esperança. As mães deste país mobilizaram-se em massa, telefonaram para a Critical Software, mandaram o currículo dos filhos e depois nós tivemos que concluir nas fases de seleção que muitos candidatos nem gostavam assim tanto desta área ou que não tinham os conhecimentos necessários. Foi muito difícil fazer essa desconstrução e haver tanta gente a ficar de fora.
Eu sinto que, edição após edição, nós vamos conseguindo comunicar melhor do que efetivamente estamos à procura e vamos gerindo melhor as expectativas também com os candidatos. Nesta quinta edição, assim que as pessoas se candidatam, recebem logo uma lista de cursos online e técnicos. Não é obrigatório que os façam, mas que são exemplificativos do tipo de competências técnicas que nós precisamos neste tipo de vagas. Eu diria que os candidatos têm sido cada vez mais especializados e próximos daquilo que é a nossa procura.
Que conselho daria a outros líderes de recursos humanos ou gestores que querem começar a trabalhar com neurodiversidade nas suas organizações?
Para avançarem, sem ter medo, porque é super gratificante. Na Critical Software, é mesmo uma das nossas iniciativas bandeira e todas as 1600 pessoas se orgulham de ter este Programa, mesmo que não estejam em contacto direto com ele.
Primeiramente, é crucial haver sempre formação e falar sobre o tema abertamente. Neste momento, a prevalência de diagnósticos de autismo é de uma em cada 36 pessoas. É quase certo que nas organizações já existem pessoas autistas ou colaboradores com filhos autistas.
De seguida, é preciso estar disponível para fazer algum investimento, porque estas pessoas merecem e precisam de algumas acomodações para conseguirem ter sucesso social, tanto na fase de seleção, como na fase de integração. Como é uma condição invisível, pode não ser tão evidente.
Se for um colaborador numa cadeira de rodas, toda a gente percebe que precisa de uma rampa para aceder ao local de trabalho. Um colaborador autista também precisa de acomodações no ambiente de trabalho.
Tudo isto exige algum investimento, dedicação e algum cuidado.
Pode partilhar uma história deste processo que a tenha tocado especialmente?
É difícil escolher, são muitas. No Dia Mundial da Consciencialização para o Autismo fazemos alguns eventos internos para sinalizar a data e lembro-me de ter perguntado a um colega autista o que é que significava para ele trabalhar na Critical Software. A resposta que ele me deu fez o mundo parar naquele instante.
Ele disse que trabalhar aqui era muito mais do que ter um emprego, que tinha mudado completamente a perceção dele do que podia alcançar na vida. Já tinha estado à procura de emprego há muito tempo e não conseguia ser bem-sucedido e ficou com uma certa ideia das limitações no que podia alcançar na vida. Agora que tinha um emprego, tinha mudado completamente a sua visão.
E de facto estes colegas surpreendem muito. Temos um trabalhador que adora abraços e sempre que nos vê, vem, abraça-nos, dá-nos dois beijinhos, fala imenso. Desconstrói completamente o estigma que temos relativamente a pessoas autistas e eu acho que é isso, cada um é único e especial.
Cada um precisa das suas condições para fazer o seu trabalho e não há nada mais normal do que sermos todos diferentes.
Todos estes momentos são muito valiosos e tentamos preservá-los e aprendemos todos uns com os outros. Não há ninguém aqui que seja dono da verdade, estamos todos a adaptar-nos uns aos outros e a fazer o caminho em equipa, em conjunto.