Ser fiel em vez de obedecer, escutar, servir e transformar o mundo numa sala de aula. Quem o diz é José María del Corral, amigo pessoal do Papa Francisco, que partilhou com a Líder algumas das muitas ideias inspiradoras.
Numa semana marcada pela visita do Papa, por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude, recorde esta entrevista.
José María del Corral esteve no seminário, mas a vida do celibato não lhe servia, ao invés preferiu servir como Presidente da Fundação Scholas, criada pelo Papa Francisco, há trinta anos, na Argentina, ainda antes de assumir as mais altas funções da igreja. Hoje, está em muitos países do mundo e também em Portugal. Tem sede em Cascais e já tem histórias para contar que nos fazem acreditar num mundo melhor.
Fale-nos sobre si. Como se define enquanto pessoa? E como líder?
Considero-me uma pessoa em constante aprendizagem. Estou a tornar-me uma pessoa, não estou terminado. Sou lutador por natureza desde a minha origem devido a uma doença da minha mãe. Ela já tinha uma idade avançada quando engravidou de mim e descobriram que tinha um mioma. O meu pai que era médico ginecologista e professor da faculdade, assim como o seu diretor, recomendaram um aborto. A minha mãe quis seguir em frente. Portanto, acho que essa luta já é anterior ao meu nascimento. Tive uma infância complicada, muito protegida pela separação precoce dos meus pais. Uma superproteção por parte do meu pai e da minha mãe que me deixou simultaneamente muito mimado e muito rebelde. Acho que tudo isso me foi ajudando a fazer daquela situação e daquelas lutas uma busca para que as coisas sejam diferentes sem me conformar com o que existe.
Quando descobre Deus?
Aos 16 anos descobri a presença de Deus num retiro espiritual no Colégio e isso deu-me um sentido e um amor que nunca tinha conhecido. A partir daí, os outros começaram a estar no meu horizonte. Comecei a cuidar de doentes num hospital, deixei o curso de Economia e entrei no Seminário. Não terminei porque percebi que o celibato não era para mim. Mas, a partir dali, descobri que a vida era uma entrega, uma entrega aos outros, e que a educação era uma forma muito concreta de se dar aos outros. Sou uma pessoa criativa, lutadora e impaciente. Muitas vezes perco a paciência quando as coisas não funcionam. Sou uma pessoa que procura aprender com a própria vida, com as coisas que acontecem, com o que vejo. É difícil para mim terminar um livro porque estou ansioso. E acredito profundamente nos jovens.
Ser indisciplinado como aluno, como já revelou em várias ocasiões, que significado pode ter? Foi uma visão insatisfeita da realidade e um desejo de mudar o mundo? A insatisfação é o motor da mudança?
Aquela indisciplina mostrava claramente insatisfação (comigo acima de tudo) e com o que estava a acontecer comigo, em comparação com o que vi noutros meninos aparentemente com situações mais normais. Entretanto, acredito que o grande impulsionador não foi a insatisfação, mas o amor. O amor é o que realmente constrói, a insatisfação gera movimento, mas o movimento construtivo, aquele que realmente gera crescimento e que constrói é o amor. Foi quando encontrei o amor que algo realmente começou a construir-se. O resto era movimento, lutas, mas não havia construção, havia movimento.
Que tipo de líderes precisamos hoje para enfrentar os desafios dos novos modelos sociais baseados na quantidade e na rapidez em detrimento da qualidade e do tempo de reflexão? Acredito que os líderes de que precisamos são líderes que colocam os outros acima de si, que sejam capazes de ouvir, ver, sentir, que estejam atentos ao que está a acontecer ao seu redor. Que não olham tanto para si mesmos, mas para os outros. Que entendam que liderar é servir e que o objetivo é fazer com que isso seja bom para todos. É um líder que se perde para o outro ser, respeitando a identidade do outro, que não pretende que o outro seja mais um ou pense como mais um, pelo contrário, ele ama a diversidade e reconhece que há algo de mistério, algo que transcende o outro e os outros. Acredito em recuperar o líder sábio que é humilde porque é sábio, que reconhece os seus erros e equívocos. Um líder que sabe pedir perdão, um líder que não se acredita superior aos outros, mas ao contrário, que está ao serviço dos outros. E que quanto mais recebeu, mais responsabilidade tem em devolver.
O que precisamos de mudar urgentemente?
O que precisamos de mudar urgentemente é o que começou há 30 anos com Jorge Bergoglio, a educação. Se não começarmos com a educação, a casa vai cair continuamente. É uma casa sem alicerces, é uma casa construída na areia. Não há organização política, económica, social, empresarial, setorial, não há saúde, não há bem-estar, não há cultura se não há educação. Mudar a educação vem primeiro. É por isso que Jorge Bergoglio, quando começou o projeto Scholas, com outros, há 30 anos, disse “se não mudarmos a educação não mudará o país”, assim também dirá “se não mudarmos a educação não mudará o mundo”.
Quem é o Papa Francisco? Por que é tão diferente de todos os seus antecessores?
O Papa Francisco é o líder de que precisamos. É por isso que quando se está com o Papa Francisco o relógio para. Ele é um dos poucos líderes que eu vi (e eu vi vários presidentes e vi reis e vi rainhas e vi secretários-gerais das Nações Unidas, e vi muitas pessoas), mas quando se está com o Papa Francisco, ao contrário de todos os outros, sentimo-nos importantes. O Papa garante que, quando alguém está com ele, sente-se importante. E também não olha para o relógio, o tempo para só para o que está a acontecer consigo, o que lhe está a dizer a ele, isso é o que importa naquele encontro. É por isso que saímos sempre tão revigorados, independentemente do tempo que estamos com ele. Nunca saímos iguais depois de estarmos com o Papa Francisco, com um verdadeiro líder.
Defina-o em três palavras.
Acredito que o Papa é sábio, tem muito humor e é humilde.
O Papa Francisco revela coragem e determinação únicas. Assume posições muito controversas para a Igreja. O que sente perante essas posições? Orgulho?
O Papa não procura o escândalo. Eu sempre digo e disse isso quando ele assumiu o cargo em março de 2013, que não devemos esperar por uma revolução de conteúdos. A revolução é a sua própria vida. O que escandaliza os outros é que ele vive como prega. Ele pregou simplicidade e pobreza e ficou a morar no seu quarto. Nenhum líder no mundo vive em oito metros quadrados. Ele manteve os seus próprios sapatos com os quais foi votar. Os sapatos são a expressão de tudo: ele continua a ser quem era, com os seus afetos, os seus amigos, o seu clube de futebol, a sua paixão. O exterior não muda isso. Pelo contrário, a partir de dentro ele muda o exterior. Como os meninos dizem “Eu não acredito nisso.” Ele não comprou ou criou nada, ele sente-se Jorge Bergoglio. Alguém que queria dar a sua vida para que outros pudessem recuperá-la. E essa é a força, ele não se encolhe com ameaças, com pressão, com calúnias. É por isso que têm medo dele. Porque sabem que ele vai continuar a caminhar. Enquanto respirar, ele continuará a fazer o que acha que precisa de ser feito. É intuitivo. E é sábio.
O Papa Francisco afirmou publicamente aceitar uniões homossexuais. O que pensa sobre isso?
Já quando era Bispo de Buenos Aires tinha referido a aceitação da união civil. Nessa altura causou polémica um projeto de lei de igualdade de matrimónio e o que ele disse foi que o matrimónio tem valor sacramental. Por isso, prefere distinguir a necessidade que uma pessoa homossexual tem de obter cobertura social, saúde, reforma. É necessário legislar porque, como dissemos antes, ele vive sempre a partir da realidade. Disse que o católico é o concreto, o que não é concreto não é católico, será ideologia. Por essa razão, respondeu a um caso concreto que lhe apresentaram. Perante esse caso concreto respondeu que está errado que afastem alguém de um grupo pela sua condição, está errado que não tenha direitos sociais e está errado que não tenha segurança. É a isso que se refere Jorge Bergoglio nessa entrevista que concedeu enquanto Bispo.
Concorda sempre com o seu patrão (como lhe costuma chamar)?
Não, nem sempre concordei. Mas fui-lhe sempre fiel. Disse-lhe sempre quando não estava de acordo e ele sempre aceitou essas diferenças. Relembro-o sempre (e ele ri) porque diz: “Vejo em si um leigo que é contra uma igreja clerical e bajuladora”. E é por isso que ele gosta que lhe digam o que se pensa, o que se sente. Sinto-me à vontade para criticá-lo e isso é bom porque torna o relacionamento verdadeiro, o vínculo verdadeiro, a amizade verdadeira. A verdadeira filiação ou paternidade. Gosto quando um filho meu me critica porque sabe que a crítica é cheia de amor. E ele permite essa situação, o que o torna ainda maior. O importante é que ele saiba que lhe seremos fiéis. É por isso que ser obediente não é o mesmo que ser fiel. O homem obediente diz “sim, sim, sim” e depois faz o que quer, os fiéis podem dizer-lhe “não vejo tão claramente, não vejo”, mas ele fará o que quiser. Porque ele é fiel. E essa é a nossa relação: fidelidade.
Há outras emergências educacionais e de requalificação que identifica?
Em relação à requalificação, houve um encontro de economistas com vencedores do Prémio Nobel de Economia e meninos da Scholas no Vaticano. No final do encontro os vencedores do Prémio Nobel de Economia, como Stiglitz e outros, disseram ao Papa que realmente aprenderam muito com esses jovens e que a economia tinha muito para repensar. Havia meninos indígenas, meninos dos Estados Unidos, da América Latina, da Europa, do Japão. Crianças que viveram a experiência Scholas. Acho que temos de ser flexíveis o suficiente, como o Papa, para começarmos a pensar se o que acreditamos ser progresso é realmente progresso. Se aquilo em que acreditamos deixa realmente as pessoas felizes, se é o que as faz realmente felizes. Acho que é um momento para esperar, um momento para pensar. Tempo para, como diz o Papa, “se reinventar”. Esta crise não veio por acaso… ela não veio por acaso. E esperamos na Scholas que esta crise sirva de aprendizagem para que não voltemos a um “novo normal” porque o que estava a acontecer connosco não era muito normal. Em vez disso, podemos aprender com esta crise e construir um mundo diferente onde, se o outro estiver mal, nós não podemos estar bem. É por isso que a Scholas acredita que as crianças são do mundo e que o mundo é uma grande sala de aula onde elas aprendem se as colocarmos juntas, se as integrarmos. Meninos de todas as culturas e religiões. E não só os meninos entre si, a Scholas propõe uma sala de aula inter- -religiosa, intercultural, mas também intergeracional, é chegada a hora de velhos e jovens se reunirem em sala de aula para que uns e outros transmitam esse passado e esse futuro para termos um presente melhor.
A Fundação a que preside, e que também tem sede no concelho de Cascais, é a menina dos olhos do Papa Francisco. O que pretende alcançar com este projeto educacional?
A Scholas pretende alcançar um mundo que seja uma sala de aula. A Scholas, pelo que ouviu, viu e guardou no coração a partir dos primeiros jovens com quem esta experiência começou, no meio de uma grande crise que se vivia na Argentina, percebeu que os meninos não aprendiam com um currículo que era ministrado numa escola fechada em quatro paredes. Pelo contrário, foi a vida, a própria vida, que ensinou aos meninos, que os fez ser de uma forma ou de outra, que os fez aprenderem uma forma de viver, pensar e ser. Uma cultura. Essa educação foi esvaziada de conteúdo. Precisamente porque lhes ensinavam apenas conteúdo. A vida foi deixada fora da educação. É por isso que a Scholas vem refazer aquele Pacto Educacional que foi rompido como o Papa disse recentemente quando lançou o Pacto Educacional. Há 30 anos a Scholas veio juntar jovens de diferentes escolas, de diferentes religiões, de diferentes níveis sociais, para se conhecerem. Para terem uma experiência educacional. Um encontro. Para partilharem horas. Para partilharem experiências. Para perceberem que aquele não é um inimigo porque tem dinheiro ou que é inferior porque tem menos, ou que pode ser perigoso porque tem outra religião ou outra cor de pele. Porque tudo isto não é algo teórico, tem de ser vivido. É por isso que as experiências da Scholas os fazem partilhar uma sala de aula diferente. Uma sala de aula entre muitas salas de aula. A Scholas continua a remover paredes das salas de aula para que os meninos se possam encontrar. Encontrar aqueles que não se conheciam e que, se se cruzassem na rua, mudariam de passeio por causa dos preconceitos que lhes estamos a incutir. A Scholas fez essa experiência com palestinianos e israelitas. Tivemos experiências em África reunindo meninos de lá com meninos da Europa. América Latina. Meninos indígenas. Crianças muito diferentes, judeus, muçulmanos e cristãos, de escolas públicas e privadas. As experiências da Scholas unem e reúnem sempre meninos muito diversos para que percebam que esta diversidade não só não é má, mas pelo contrário, enriquece-nos e dá-nos uma verdadeira identidade.
Teve sucesso em Portugal?
A palavra sucesso não está no nosso dicionário. A experiência de Cidadania que se fez em Portugal para os rapazes (e é isso que interessa) foi extremamente rica, como eles próprios avaliaram e escreveram nos “que te pa” (textos em que contam o que se passou) no final da experiência.
Os meninos de Portugal deram testemunho de como viveram todos aqueles dias juntos, vindos de escolas diferentes. Essa experiência foi tão forte que até hoje muitos ainda estão presentes e acompanham outras experiências no mundo. É isso que vale a pena.
É incrível que, às vezes, uma semana dá às crianças muito mais do que 7, 8 ou 10 anos na escola. Isso mostra que existem duas formas de educação, uma que vai ao coração e outra que fica na instrução e na forma. Esta segunda, por mais cara e por mais diplomas que dê para pendurar nas paredes, já não interessa aos meninos.
Em Portugal a experiência ainda está a começar, portanto, é um bebé que já nasceu, mas precisa de se levantar e dar os primeiros passos. A nova equipa está a ser formada e é importante poder trabalhar não só ao nível do país, mas também a nível regional.
Que exemplos o fazem acreditar no poder desta Fundação impactar o mundo e os jovens que nela participam?
Os exemplos que nos fazem acreditar nesta instituição são permanentes. Diria, todas as experiências, todas, ratificam a necessidade deste movimento, desta revolução educacional.
Dou um de muitos exemplos. Quando a Scholas chegou a San Antonio de los Cobres, na província de Salta, no norte da Argentina, encontrou uma população de seis mil habitantes integrada na natureza, sol, ventos, montanhas. No meio dessa natureza descobrimos que os jovens, os adolescentes, sofreram muito. Os seus irmãos, os seus colegas de escola, morriam por suicídio. Quando a Scholas chega e trabalha a partir dos problemas dos próprios jovens, com a nossa forma de trabalhar, não de currículo, mas dos problemas reais dos jovens, descobrimos que trinta meninos se suicidaram naquele ano atirando-se de uma ponte. Essa ponte era ironicamente chamada “ponte das soluções”.
A educação formal falhou, as autoridades falharam, o mundo adulto não sabia o que fazer. Os pais tentaram, sem querer, encobrir essa angústia, essa culpa. Mas a fórmula da Scholas funcionou ao colocá-los juntos. Juntaram-se as duas escolas que existiam e ao invés de entrarem em conflito, começaram a falar sobre o que estava a acontecer com eles, sobre a sua tristeza. Um espaço de diálogo, um espaço de escuta, de conexão com o que sentiam. A partir daí surgiu o cinema. Todas as sextas-feiras quando as aulas terminavam eles reuniam-se para verem um filme, e então surgiu a ideia de pintarem a ponte. Passado um ano eles conseguiram superar a burocracia e pintar a ponte. Essa ponte da morte tornou-se para eles uma ponte de cores. Já se passaram mais de cinco anos sem haver um único suicídio naquela ponte.
Acho que isso mostra que a cultura do encontro que a Scholas propõe é absolutamente eficaz e eficiente.
Se ensinarmos os nossos líderes a comunicarem desde o início, estaremos a contribuir para um mundo de diálogo e inclusão, onde as fronteiras são apenas acessórios territoriais?
Não haverá líderes se não houver liderados. Não haverá políticos se não houver pessoas capazes de aprender, de servir, de ouvir. É por isso que começamos com os adolescentes. Começamos com aqueles que depois poderão ser políticos, empresários, pais, mães… começamos do início. Porque como diz o Papa Francisco “não haverá grandes jogadores de futebol se não houver primeiro uma sementeira, um pasto onde os meninos jogam à bola na rua e descobrem na bola e no futebol uma paixão, um jogo, algo que os diverte. Não existe escola de líderes, mas existe uma cultura de líder. E não haverá uma cultura de líder se não houver uma cultura de prestação de serviços, perceber que o que acontece ao outro me afeta e que o meu bem é o bem comum. E não usar o outro para mim. Isso aprende-se, isso é aprendido culturalmente. Essa cultura é a que chega através da Scholas. Essa aprendizagem que é a aprendizagem da rua. É por isso que a Scholas não pretende mudar uma escola ou construir uma escola, mas fazer da rua uma escola, fazer da vida uma escola. Porque o menino aprende na vida e não na escola. Aprende, pelo menos, o que realmente vale a pena.
Quais os projetos para o futuro?
No futuro a Scholas pretende chegar ao mundo inteiro. O seu objetivo é alcançar jovens de todo o mundo. O desejo da Scholas é muito ambicioso, mas sabe que não chegam as suas forças e muito menos os seus recursos (porque senão poderia não ter sequer começado). A Scholas começou sem dinheiro e com nada mais do que um padre, o padre Jorge e dois diretores de professores, doidos – como ele diz – que acreditavam que era possível construir uma sala de aula sem paredes. A cultura do encontro. Queremos levar esta cultura do encontro e esta experiência às crianças de todo o mundo, sabendo que é a sua força que permitirá que isso aconteça.
Por Catarina G. Barosa
Fotos DR
A entrevista foi publicada na edição de dezembro da revista Líder.