O setor alimentar emite um terço dos gases com efeito de estufa. Soluções existem, mas o mundo ainda hesita. Por muito que se fale em transição energética ou em cortar com os fósseis, a verdade continua crua e difícil de digerir: a indústria alimentar é um dos principais motores do colapso climático. Sozinha, emite um terço dos gases com efeito de estufa, consome 70% da água doce do planeta e arrasa 80% das florestas destruídas todos os anos. E, no entanto, só capta 8% dos investimentos em tecnologias climáticas.
Os dados estão no mais recente relatório da BCG com o Fórum Económico Mundial. O aviso é direto: sem uma mudança radical na forma como cultivamos, produzimos, transportamos e consumimos comida, não haverá futuro sustentável. Continuar neste caminho é servir um banquete de autodestruição.
Planeta à mesa, mas a conta chega amanhã
Já vimos os pratos a faltar. As cheias no Paquistão afogaram campos inteiros de arroz. A seca prolongada no Corno de África deixou milhões sem acesso ao básico. No Brasil, pragas descontroladas dizimaram colheitas de milho e soja. Em Madagáscar, a primeira fome oficialmente atribuída às alterações climáticas. A crise alimentar não é uma previsão — é o menu do presente.
E, no entanto, investimos como se não fosse conosco. Desde 2020, os fundos alocados à inovação alimentar caíram de 22% para 8% do total das tecnologias climáticas. Enquanto se despejam milhões em baterias e carros eléctricos, a agricultura sustentável continua à margem. É como tentar apagar um incêndio com uma chávena de água — sabendo que temos um lago ao lado.
Agricultura regenerativa: um sumidouro ignorado
Há soluções no terreno. E não são ficção científica, são práticas reais, testadas, com impacto mensurável. A agricultura regenerativa, por exemplo, pode armazenar até 120 mil milhões de toneladas de CO₂ até 2050 — mais do que três vezes as emissões globais de um ano. É um pulmão vivo à espera de escala, capaz de transformar solos degradados em verdadeiros cofres de carbono. Mas continua a ser tratada como uma nota de rodapé no grande livro da transição ecológica.
Há também sistemas de irrigação inteligente, que conseguem reduzir o uso de água para metade — uma revolução discreta, mas vital, num planeta onde a escassez de água já afeta milhares de milhões. Imagine-se o que isto representa no Sul Global, onde cada gota conta e os campos morrem de sede.
E há ainda as proteínas vegetais e os sucedâneos da carne, que, se forem adotados em larga escala, podem evitar mais de 100 mil milhões de toneladas de emissões até meados do século. É um corte comparável ao de eliminar por completo as emissões da China durante mais de uma década. E no entanto, continuam a ser vistas por muitos como excentricidades de nicho ou modas passageiras.
As ferramentas estão à vista. A caixa de soluções está aberta. O que falta é vontade política, músculo financeiro e visão de futuro.
Fome, obesidade e desperdício: o triplo fracasso
Vivemos num sistema alimentar que falha em três frentes: produz alimentos que não alimentam, desperdiça um terço do que colhe e deixa quase mil milhões de pessoas com fome. Ao mesmo tempo, um quarto da população mundial vive com deficiências nutricionais e mais de mil milhões enfrentam problemas relacionados com a obesidade.
É um paradoxo cruel: abundância tóxica para uns, escassez crónica para outros. Um modelo desenhado para maximizar lucro e minimizar nutrição, enquanto esgota os recursos e semeia desigualdades.
A produção alimentar moderna, dominada por grandes corporações e pela agricultura industrial, muitas vezes foca a quantidade em detrimento da qualidade. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) alerta que, embora o mundo produza alimentos suficientes para alimentar toda a população, grande parte dessa produção não contribui de forma significativa para uma alimentação nutritiva. Culturas como soja, milho e trigo são cultivadas em larga escala, mas frequentemente resultam em produtos processados com baixo valor nutricional.
Muitos desses alimentos são usados para alimentar animais ou são convertidos em produtos industrializados, como fast food, que são ricos em calorias vazias e pobres em nutrientes essenciais. O aumento da obesidade e de doenças relacionadas à dieta desequilibrada, como diabetes e doenças cardiovasculares, são um reflexo direto dessa tendência, com os alimentos processados sendo um dos principais responsáveis por essas condições.
Desperdício Alimentar
O desperdício de alimentos é um dos maiores paradoxos no sistema alimentar atual. A FAO estima que cerca de um terço de todos os alimentos produzidos globalmente sejam desperdiçados anualmente, o que equivale a cerca de 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos. Esse desperdício ocorre em todas as etapas da cadeia de produção, desde a colheita até o consumo final.
A maior parte desse desperdício ocorre nos países desenvolvidos, onde alimentos são descartados por não estarem em perfeitas condições ou por excesso de compra. Além disso, estima-se que mais de 40% dos alimentos nos Estados Unidos sejam desperdiçados. Esse desperdício é inaceitável, especialmente considerando que poderia alimentar milhões de pessoas que sofrem com a fome, um problema ainda persistente, com a FAO estimando que 800 milhões de pessoas no mundo ainda vivam com fome crónica.
O impacto ambiental do desperdício de alimentos também é significativo, já que a produção de alimentos é uma das principais fontes de emissão de gases de efeito estufa. O desperdício de alimentos contribui para o esgotamento de recursos naturais como solo, água e energia, além de gerar grandes quantidades de resíduos orgânicos.
As quatro paredes do impasse
Posto isto, a BCG identificou os muros que travam a transição:
Custos de produção ainda altos: tecnologias sustentáveis ainda são caras para muitos agricultores.
Regulação lenta e desfasada: a burocracia não acompanha a velocidade da inovação.
Desconfiança do consumidor: poucos estão dispostos a pagar mais por produtos sustentáveis.
Infraestruturas obsoletas: o sistema logístico ainda está alinhado com o velho modelo de produção.
São barreiras reais, mas não intransponíveis. Precisam de coragem e coordenação. E sobretudo, precisam de deixar de ser desculpas.
A urgência pede alianças corajosas
Não basta a boa vontade dos consumidores. Não chega o ímpeto de startups. A transformação exige uma aliança de Estado, mercado e sociedade civil.
Governos que regulem com inteligência e incentivem com ambição.
Empresas que alinhem lucro com planeta.
Bancos e fundos que apostem no longo prazo.
Agricultores que liderem, com apoio técnico e financeiro.
Cidadãos que escolham com consciência e pressionem com convicção.
Food Innovation Hubs: as incubadoras do possível
Há já polos de inovação alimentar ativos na Colômbia, Índia, Europa, Médio Oriente e África. São laboratórios vivos onde empresas, cientistas, agricultores e decisores públicos trabalham lado a lado. Criam soluções adaptadas ao contexto local, testam novas práticas e espalham conhecimento.
Mas sem irrigação política e sem financiamento robusto, correm o risco de ser apenas vitrines para turistas da inovação.
A escolha não é entre manter ou mudar. É entre viver ou colapsar.
Até 2030, seremos mais de 8 mil milhões à mesa. E no entanto, estamos a perder 1% das terras aráveis por ano. Os solos esgotam-se, os ecossistemas colapsam, os rendimentos agrícolas tornam-se imprevisíveis. Continuar assim é um jogo de roleta russa com o prato vazio como bala final.
A revolução alimentar não é um luxo ecológico, mas uma urgência existencial. Tem de haver investimento e política pública. Tem de ser presente no prato, no supermercado e no campo. Não podemos continuar a comer como se não houvesse amanhã — porque pode mesmo não haver.