“China em dez palavras”, da autoria de Yu Hua, é um fabuloso livro de histórias que permite conhecer a história mais recente da China. Mas é, também, uma fonte de reflexão – para interpretar algumas facetas do capitalismo moderno. A certo momento, o autor dá nota das enormes disparidades de rendimentos na China e da indiferença que as mesmas suscitam entre franjas mais favorecidas da população. A esse propósito, relata uma história que releva para o entendimento do que ocorre fora da China.
Em fevereiro de 2009, Hua participou numa conferência numa universidade em Vancouver, no Canadá. Após relatar casos de pobreza extrema e arrepiante (a quem tem dúvidas sugiro a leitura do capítulo sobre disparidade), um estudante chinês levantou-se para afirmar: “O dinheiro não é o único critério para medir a felicidade”. Hua confessa que ficou arrepiado – por sentir que este sentimento era partilhado por numerosos chineses contemporâneos. Essas pessoas, que vivem imersas na prosperidade crescente, não denotam qualquer empatia pelos milhões de concidadãos que sobrevivem miseravelmente em condições inimagináveis para elas. Hua escreveu então: “Cheguei à conclusão de que a nossa principal tragédia é precisamente esta, pois ignorar a pobreza e a fome é ainda mais assustador do que a sua própria existência”.
Esta indiferença não é apanágio exclusivo da China. Vemo-la por todo o lado, no nosso quotidiano. Contra ela se tem manifestado o Papa Francisco. Algumas empresas vivem na corda bamba – e não podem pagar melhores salários. Mas outras estão em condições de recompensar melhor os colaboradores que atualmente fruem salários modestos. Não deixa de ser estranho que a narrativa que se opõe ao salário mínimo, ou ao seu aumento, assente frequentemente em argumentos de perda de competitividade – ao mesmo tempo que não explica como se pode considerar competitiva uma empresa que só sobrevive porque remunera pobremente. Não deveríamos ficar chocados com o argumento de um conhecido empresário português quando afirmou que “Subir o salário mínimo agora é uma ideia criminosa”? Não será emocionalmente “criminoso” o seu comentário? Não deveríamos ser mais sensíveis à ofensa sentida pelos cidadãos visados? Porque não se presta atenção à evidência sugerindo que uma subida razoável do salário mínimo não afeta significativamente os níveis de desemprego? O mesmo empresário afirmou que “Temos uma percentagem muito elevada da população ativa com níveis de escolaridade baixíssimos, uma vergonha no confronto com outros países europeus (e que também não se mudou nos últimos 40 anos)”. Mas não lhe ocorreu que salários miseráveis impossibilitam as famílias de investir na educação dos seus filhos. Por isso volto a Hua: ignorar a pobreza é tão ou mais assustador do que a sua própria existência.