Eis mais um escândalo – o da FTX, a fantástica, prometedora, fabulosa, revolucionária, disruptiva, altruísta e virtuosa plataforma de criptomoedas. O multimilionário Sam Bankman-Fried, seu fundador e líder, passou de divindade a ídolo com pés de barro. A empresa era um feudo seu e de meia dúzia de iluminados sem rédea. O caso ajuda a compreender duas coisas. Primeira: se o que é prometido é demasiado perfeito, convém ser cauto. A segunda, que aqui me traz, é clássica: o poder desprovido de reais (não apenas formais) pesos e contrapesos é muito perigoso.
Eis uma lista de lideranças todo-poderosas que, com rédea solta, semearam perturbações na sua própria vida e nas vidas de milhares e milhares de pessoas e entidades: Elizabeth Holmes (Theranos), Carlos Ghosn (Nissan), Carrie Toldstedt (Wells Fargo), Adam Neumann (WeWork), Ricardo Salgado (BES), Oliveira e Costa (BPN), João Rendeiro (BPP) e Paula Brito e Costa (Raríssimas). Esperemos para ver o que resultará do estilo imperial de Elon Musk após ter adquirido a rede social Twitter.
Recentemente, o Tribunal Constitucional chumbou os estatutos do Chega, condenando a “significativa concentração de poderes” no líder do partido e rejeitando a punição de militantes por “insubordinação”. De Putin e da captura das instituições é melhor nem falar.
Naturalmente, estes casos são diferentes entre si em múltiplas dimensões. Não são comparáveis os estragos e a gravidade das consequências das ações destas figuras iluminadas, todo-poderosas, que prometem mudar este mundo e o outro, e que atraem hordas de entusiastas (ou, na melhor das hipóteses, observadores passivos). Mas há um núcleo de semelhanças, entre estes e outros casos, que passo a citar.
Estas lideranças concentram poder. Detestam limites institucionais ao exercício da sua vontade. Rotulam como desleais quem delas discorda. Odeiam ter de explicar as suas decisões. Adoram o consenso – e atacam as ovelhas negras que pensam pela própria cabeça. Atacam quem se atravessa no seu caminho para, acusam, criar engulhos à prossecução da sua missão. Atribuem-se qualidades morais elevadas – mas não se escusam a usar experientes imorais para alcançarem os seus objetivos.
Estas lideranças “são a organização” (ou o país) – pelo que os opositores e discordantes são rotulados como inimigos da organização, do povo ou do país. Por fim, estas lideranças falam em tom messiânico. Articulam uma narrativa assente numa alegada missão virtuosa que se atribuem o dever de prosseguir (“Deus confiou-me a difícil, mas honrosa missão de transformar Portugal”, Ventura dixit). E não se pense que este messianismo é exclusivo da vida política. Adam Neumann, o semideus que fundou e liderou a WeWork, era bem claro: “Estamos aqui para mudar o mundo.
Menos do que isso não me interessa”. Elizabeth Holmes, condenada recentemente a uma pena de prisão superior a uma década, afirmou aos empregados: “O miniLab é a coisa mais importante que o mundo alguma vez criou. Se não acreditam nisso, devem sair já”. Em suma: qualquer quer seja a arena em que operam, estas lideranças encaram a organização como um feudo pessoal.
Creio haver algumas lições a extrair desta evidência. Primeira: é dever das lideranças cultivar o desconforto provindo da crítica e dos limites ao seu próprio poder. Segunda: é fundamental que as organizações não se deslumbrem com salvadores todo-poderosos e antes criem quadros institucionais que limitam o poder das lideranças. Terceira: como liderados (e cidadãos), temos o dever de desenvolver espírito crítico, e mesmo desconfiança, perante lideranças messiânicas que detestam ser contrariadas e submetidas a freios e contrapesos.
As lideranças que não criam, ou não aceitam, limites ao seu poder devem ser alvo da nossa crítica e de uma fundada desconfiança. A força regeneradora de uma boa liderança radica, em grande medida, no vigor e na sabedoria contida nos pesos e contrapesos que a impedem de exercer o poder com rédea solta. Para que os “donos-disto-tudo” não se transformem em “destruidores-disto-tudo”.