A consolidação da tecnologia e o hábito de estarmos permanentemente conectados à internet e aos outros, estão na origem da discussão do tema sobre o “direito de desligar” (ou “direito de desconexão”) nas sociedades civilizadas. No rescaldo da pandemia, o tópico assumiu ainda maior importância, uma vez que, durante este longo e estranho período, milhões de pessoas viram-se obrigadas a deixar os seus locais de trabalho e a trabalhar remotamente a partir de suas próprias casas, com a necessidade de estarem sempre ligados.
O conceito de “direito a desligar” terá surgido em França, no âmbito de uma decisão judicial que deliberou sobre o direito de o trabalhador poder recusar laborar, fora do seu horário e local de trabalho. Este foi o primeiro país europeu a introduzir, em 2016, legislação sobre o direito de os trabalhadores não serem contactados durante o seu descanso.
O direito de desconexão surgiu consagrado no artigo L. 2242-17 do Code du Travail. Neste país, este direito não é de aplicação direta e imediata, uma vez que para adquirir efeitos práticos implica negociação com estruturas sindicais.
Na ausência destes acordos, o empregador poderá elaborar uma política sobre o tema, após consulta do comité social e económico, onde define os termos e condições para o exercício do direito a desligar. Em 2017, Itália veio também legislar sobre estas matérias.
No entanto, a legislação italiana estabelece que apenas os trabalhadores remotos têm o direito de se desligar dos dispositivos tecnológicos e das plataformas que utilizam no exercício das suas funções, sem sofrer quaisquer consequências no seu estatuto laboral ou compensação. Depois de França e Itália, seguiu-se Espanha, em 2018, que com a transposição do GDPR para a legislação local, introduziu um novo conjunto de direitos digitais, nomeadamente o direito à desconexão de todos os trabalhadores, tanto do setor privado como do setor público.
Em 2021, no auge da pandemia, o governo irlandês anunciou o novo código de práticas laborais (“Code Of Practice For Employers And Employees On The Right To Disconnect”), segundo o qual todos os trabalhadores têm o direito de se desligarem do trabalho fora do horário normal de trabalho, incluindo o direito de não responder imediatamente a e-mails, chamadas telefónicas ou outras mensagens. O «Código do Trabalho Português» estabelece uma noção de “período de descanso”, por contraposição ao conceito de tempo de trabalho, e consagrando esse período como um direito ao repouso e ao lazer. Das diversas normas sobre a duração e organização do trabalho parecia já resultar a consagração de um direito a desligar, ainda que não especialmente clarificado.
O tema do “direito a desligar” mereceu destaque, recentemente, com a entrada em vigor da Lei 83/2021, de 6 de dezembro de 2021, a qual, visando alterar o regime do teletrabalho, veio adicionar uma nova disposição ao «Código do Trabalho» (Artigo 199.º – A) o qual, sob a epígrafe “Dever de abstenção de contacto”, expressamente impõe aos empregadores o dever de se absterem de contactar os trabalhadores fora do horário normal de trabalho, salvo situações de força maior. Apesar de ser um artigo que surge no seio de uma alteração ao regime do teletrabalho, entendemos que o mesmo não se aplica apenas aos trabalhadores que se encontrem neste regime, mas a todos.
A nova disposição legal determina que constitui uma ação discriminatória qualquer tratamento menos favorável dada ao trabalhador, pelo facto de exercer o direito ao descanso aqui consagrado, não podendo este ser prejudicado, nomeadamente, na sua progressão na carreira ou condições de trabalho. A formulação legislativa, sendo relativamente simples e pouco densificada, não nos parece que tenha consagrado um verdadeiro direito do trabalhador à desconexão, o qual, na verdade, deverá ser encarado tendo em consideração as diferentes realidades laborais.
Efetivamente, este dever de abstenção de contacto pelo empregador parece ter sido concebido para cobrir a realidade do trabalhador com um horário de trabalho fixo, e não para as realidades de horários de trabalho flexíveis, regimes como o da isenção de horário de trabalho ou os trabalhadores “nómadas digitais”, em que a linha entre o período de descanso e o período laboral pode ser mais difícil de traçar. Em Portugal, de acordo com o Eurostat, mais de 10% dos trabalhadores admite que exerce as suas funções sempre sob pressão do tempo, estando bastante acima da média comunitária, sendo Portugal, paralelamente, um dos países da Europa com menor produtividade, o que urge ser alterado. Julgamos que o desafio, mais do que legal é cultural, sendo indubitável que, cada vez mais, é essencial fomentar o bem-estar emocional, o equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal, consagrando rotinas de trabalho que permitam aos colaboradores melhorar a sua eficiência e realização profissional, devendo as empresas e os trabalhadores convergir, preparando-se para os desafios laborais do futuro.
Este artigo foi publicado na edição de inverno da revista Líder
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