Numa localidade que se esconde atrás dos montes, no Norte de Portugal, trava-se uma batalha desconhecida aos olhos de muitos, mas que tem conquistado algum terreno na comunicação social, por se tratar de um verdadeiro duelo de David contra Golias.
Covas do Barroso, no município de Boticas, em Trás-os-Montes, é Património Agrícola Mundial desde 2018, único em Portugal, atribuído pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Desde 2017 que a Savannah Resources, empresa britânica de mineração, mostrou interesse no que dizem ser das maiores reservas de lítio de Europa, localizadas nessa região. Começou então uma dança de prospeções, compra de terrenos e primeiros passos na exploração, num processo que a população local classifica como pouco transparente.
Se a terra pudesse falar, o que diria sobre os que vêm de fora cavar onde nunca semearam? A população fala, e não tem pejo em admitir que «foi um choque e a única opção é unirmo-nos».
Quem o diz é Catarina Alves Scarrott, Professora e integrante da União em Defesa de Covas do Barroso (UDCB) que relata à Líder como tem sido a resistência da comunidade que, de enxadas em riste, se uniu para não mais separar numa luta pelo que acreditam ser seu e da Natureza. «Nós somos apenas pessoas normais numa situação extraordinária», diz.
Desde 2017 que a Savannah Resources quer explorar as reservas de lítio de Covas do Barroso. Como tem evoluído a situação ao longo dos anos?
Tudo começou quando eu tinha 18 ou 19 anos, quando um geólogo nos foi bater à porta para ver umas pedras que havia lá num terreno que nos pertencia. Eu e a minha mãe quisemos saber do que andavam à procura e a resposta que nos foi dada foi granito branco, para fazer cerâmica. Isso foi em 1996 – 97. O Departamento de Geologia da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro estava interessado em estudar ali as rochas. Eu não fiquei muito satisfeita com aquela resposta, com aquele interesse.
No início dos anos 00 houve pedidos de prospeção, incluindo terrenos do meu pai, e foi aí que comecei a investigar e descobri que falavam das maiores reservas de lítio da Europa, em Covas do Barroso. Fui procurar, tentar saber mais, e fiquei chocada com aquilo que vi. A informação estava maioritariamente em inglês.
Havia vários documentos, alguns num inglês macarrónico, um deles intitulado ‘Lithium Potentialities in Northern Portugal’, que promovia a mineração de lítio e as reservas de Covas. Eu sou de Humanidades, não de Ciências, e recordo-me de falar com alguém mais entendido e me dizerem: «Se isto está nas tuas terras, é um problema».
Em 2017, quando aparece uma empresa de mineração, a Savannah Resources, a dizer que queria explorar lítio, resolvi ir descobrir mais e saber do que andavam realmente à procura. Havia uma licença para explorar feldspato e quartzo na região, que remontava a 2006, e já havia algum entendimento na aldeia que iria existir uma pedreira, com o objetivo de levar minerais e pedras para cerâmica. Não havia menção de lítio licença, apenas noutros documentos. Não houve entendimento da dimensão nem do que procuravam, realmente.
A empresa britânica aparece então dizendo que ia, no âmbito da licença de 2006, explorar lítio. Acho que foi muito desonesto, apareceram de repente e os locais não sabiam o que se passava ou que direitos tinham, do que poderiam ou não permitir.
Muitos deixaram fazer prospeção nas suas terras, inclusivamente o meu pai, mas rapidamente começaram a ver a dimensão do que queriam fazer: a proximidade das casas, os estragos que estavam a fazer. Começaram a fazer perguntas.
Da minha parte, comecei a ouvir o que diziam na aldeia, a preocupação das pessoas, e a tentar ajudar, lendo relatórios. Comecei a ficar muito preocupada, o que a empresa dizia não batia certo com os relatórios dos investidores. Baseavam-se numa licença que claramente não permitia a exploração de lítio, diziam que já tinham um estudo de impacto ambiental, mas a área referida não tinha nada a ver com a da licença, tinha aumentado.
Em dezembro de 2024, a então Secretária de Estado da Energia, Maria João Pereira, concedeu uma servidão administrativa com base numa declaração de interesse nacional que não foi publicada no Diário da República. A decisão não foi comunicada à Ministra do Ambiente e Energia e a Secretária de Estado acabou por ser demitida. Só com a entrada de uma providência cautelar é que os trabalhos pararam, durante duas semanas, mas as máquinas continuaram nos terrenos, a invadir as propriedades.
O Governo e a Comissão Europeia querem que a mina vá avante a qualquer custo, sem uma discussão aberta sobre o que isto significa para a transição energética e no que pode advir daí. Esta é uma transição energética destinada a salvar a indústria automóvel, não é outra coisa.
Quais têm sido os últimos avanços da vossa causa?
A população determinou que não quer a mina, mas esta está a ser imposta, muitas vezes em baldios e terrenos particulares. Alguns terrenos foram de facto vendidos, ao sabor do vento da inflação, alguns por pessoas que já nem vivem na aldeia. Muitas medições desses terrenos ultrapassam o estipulado e usurpam zona baldia. Aqui, toda a gente sabe que terrenos são de quem.
Tivemos de fazer um bloqueio, pois a empresa quis entrar em terrenos que estavam em disputa legal, entre novembro de 2023 e maio de 2024. A empresa de mineração não tem acesso a mais de três quartos dos terrenos da área de concessão. Os baldios são geridos pelos compartes de Covas do Barroso e, em assembleia, foi votado que não se quer a mina, pelo que não podem aceder a essa área.
A GNR tem intimidado a população para que a Savannah entre nos terrenos privados, locais fora da sua servidão administrativa que estão em disputa legal, para chegar às áreas que de facto lhe pertencem. Há umas semanas, um proprietário viu-se obrigado a remover um reboque, para dar passagem à empresa, sem haver documentos que provem o acesso da Savannah por estes territórios.
A população ficou revoltada e apareceu no terreno, dias depois, para impedir que isto volte a acontecer. Até haver documentos, nós não saimos. E a GNR só não apareceu no dia em que chegou a comunicação social
O que se está a passar em Covas é um atropelo, um abuso da vontade e direitos da população
Temos vários processos em tribunal da Savannah Resources: acusam-nos de ter atirado cartas para cima de um balcão, tentam descredibilizar o Presidente da Associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso (UDCB), acusando-o de violência de género e de descredibilizar e denegrir a empresa.
Também nós pusemos processos contra o Estado relativamente à atribuição da licença, ao estudo de impacto ambiental e vamos pedir uma revisão interna à classificação deste projeto como estratégico por parte da União Europeia.
Considera que há espaço para um futuro onde a mineração de lítio possa coexistir com a população?
Nós temos pareceres muito preocupantes em várias áreas, que não foram levados em conta, tais como a incompatibilidade deste projeto com a identificação da região como Património Agrícola Mundial. Esta exploração tem impactos muito sérios na hidrologia da região, envolvendo o estancar da água, que corre na aldeia como se fosse o sangue pelas veias, para evitar a contaminação.
A evidência mais preocupante que nós temos é de um hidrólogo dos Estados Unidos, que fez uma análise independente à proposta de rejeitos da escombreira, e ele diz é que este caso é muito preocupante.
A Savannah pretende fazer uma escombreira de cerca de 140 metros de altura e a menos de um quilómetro do rio. O especialista afirma que é especialmente perigosa por ser uma escombreira alta e numa zona muito húmida, com elevado nível de pluviosidade. Desta forma, a escombreira pode falhar e levar os resíduos ao Rio Douro ou até mesmo ao Atlântico.
Estamos a permitir, em Portugal, coisas que não são permitidas em países como o Chile e o Brasil.
Parece ter havido uma falta de transparência e comunicação para com os locais. Sentem-se ouvidos pelas instituições públicas ou têm enfrentado uma resistência institucional?
Não houve comunicação clara. A população ficou mais revoltada por não haver respostas, quer da Direção-Geral da Energia e Geologia (DGEG), quer da Câmara e da Junta, que não sabiam ao certo o que se estava a passar. Ninguém tinha sido informado das especificidades e as pessoas sentiram-se confrontadas com isto.
Tinha-nos sido dito que, havendo problemas com as casas, seriam dadas indemnizações para mudar de casa, que o rio que atravessava a aldeia seria desviado, caso fosse necessário, e as pessoas começaram a ficar muito preocupadas com esta ideia de ‘não haver problemas’.
A população estava a ver as coisas a acontecer à sua frente e não havia respostas.
Na Páscoa de 2018, alguém conseguiu levar o deputado do Partido Comunista, Jorge Machado, a Covas do Barroso, que fez perguntas à DGEG em nosso nome. As respostas que obtivemos, sem grandes certezas, era que, para sabermos mais, teríamos de consultar documentos em Lisboa. Também ficámos a saber que, em 2011, tinha havido uma adenda no contrato de 2006. Como é que ninguém tinha sido informado de nada? A licença foi alterada sem que o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) ou a Câmara Municipal fossem consultados.
Foi-nos dito, no entanto, que a Savannah Resources não podia abrir a mina e fazer exploração ou entrar em terrenos privados sem autorização e foi a partir daí que barrámos a entrada, pois já tinham feito imensos estragos.
Outro grande choque foi descobrirmos que a DGEG promove a mineração, mas não fiscaliza. Disseram-nos que, com tantas minas de norte a sul do país, só havia dez técnicos, deixando de haver capacidade de fiscalização. Atribuem as licenças de forma indiscriminada e não há consideração pelas populações que lá vivem.
Não há monitorização nem controlo, há uma atitude de subserviência para com os investidores
As expetativas criadas pela DGEG sobre mineração em Portugal são inacreditáveis e põem em risco a autonomia e soberania do país. O fascínio pelo investimento estrangeiro sem o entendimento de que são parasíticos. Nós estamos a vender o que temos, os estragos são enormes e a maior parte do dinheiro não vai ficar no país.
Estas minas serão a céu aberto, uma delas terá uma profundidade de 150 metros e 500 ou 600 de diâmetro. Estamos a falar de áreas muito grandes num território muito pequenino para extrair uma quantidade muito pequena de lítio, que nem justifica a construção de uma refinaria.
O tema da próxima edição da Revista Líder é ‘Enfrentar’. Qual é a importância de continuarmos a enfrentar quem nos desafia, nos dias que correm, na atuaç conjuntura política e social?
Nós enfrentamos porque sempre fomos uma comunidade que viveu de forma sustentável. Tendo em conta a crise climática que estamos a atravessar, qualquer coisa que signifique desperdício é um absurdo. Querem-nos sacrificar, para explorar e retirar coisas da terra que não são absolutamente necessárias. Porquê nós? E para quê?
Este processo vai sacrificar terra, solos, água, florestas e pessoas, para continuarmos a gastar recursos da mesma forma e manter o nível de vida da população. O trocar de telemóvel a cada quatro ou cinco anos, o mesmo caso com os carros. Esta destruição justifica quarenta ou cinquenta mil carros?
Continuamos a falar em autossuficiência, a produzir cada vez mais, e não há preocupação com as pessoas ou consequências. Isto nem é uma posição contra o capitalismo, é contra o excesso, a favor do senso comum.
Em Covas do Barroso, as pessoas não têm tempo para estar a pensar se isto é comunismo, capitalismo ou neoliberalismo. Elas estão a sentir na pele as consequências desta atitude.
Dizem que não sabemos do que falamos, mas as coisas não são assim tão complicadas. Vendem-nos estas novas roupas do rei, mas nós conseguimos ver que o rei vai nu. É importante as pessoas levantarem-se, pois temos uma ideia da democracia que é muito diferente da realidade, vivemos uma apatia política. A democracia não é perfeita, é uma construção, e é preciso que as pessoas estejam atentas. É importante que participem e saibam os seus direitos.
Há muitos maus hábitos que têm de ser mudados, como a ideia de que o Governo decide e já está. Acredita-se que as instituições sabem o que estão a fazer e que é pelo melhor, que pensam nas pessoas.
Que características são essenciais, então, para enfrentar e que vos têm mantido unidos nesta luta?
Primeiro, a comunicação que temos entre nós e esta capacidade de apoio, entreajuda. As pessoas têm de estar nisto de corpo, alma e coração, acreditar que estão a lutar pelo melhor. Mas é difícil, nós somos pessoas normais a viver uma situação extraordinária, a enfrentar Golias.
Os tribunais supostamente deviam estar cá para defender os nossos direitos e não estão a funcionar com a eficácia devida. Começa logo por só quem ter dinheiro conseguir aceder e isso para nós é um entrave. O sistema de justiça em Portugal precisa de ser mais justo e equitativo, incluir toda a gente.
Estamos a um dia do 25 de abril. Que mensagem de liberdade é esta que querem passar?
Eu sempre acreditei no poder da imprensa e cresci a ler o Miguel Esteves Cardoso, no Expresso, no valor e importância dos media. Custa-me ver este assalto à imprensa, a manipulação que vejo em todo o mundo.
É importante que os meios de comunicação estejam livres de influências, bem como o Governo. É muito importante que haja transparência, liberdade de imprensa e participação pública. Que se valorizem as pessoas. O recurso mais valioso que o nosso país tem são, de facto, as pessoas. E é o que mais temos exportado, para países com melhores condições de vida.
Portugal vai tornar-se numa ‘República das Bananas’, mas com minas. Vai ser o país das minas. Abram os olhos, estejam atentos.
Imagens: Facebook Unidos em Defesa de Covas do Barroso