Vivo inundada de informação com tudo o que leio, o que vejo, oiço, deduzo, concluo, invento, sonho, imagino e, por isso, convenhamos, não é fácil encontrar o ponto de verdade, ou aquela clareira que nos permite uma caminhada sem medo. Tudo isto se torna ainda mais complexo quando, para além do volume de informação, a rapidez com que ela nos chega e se vai embora é assustadora.
São várias as razões: a primeira, porque impede a perenidade e a sustentabilidade no tempo de uma convicção, de uma ideia orientadora – quantas vezes não fazemos um enquadramento dos factos e julgamos poder formular uma opinião válida sobre eles, para, não muito tempo depois, nos vermos confrontados com a necessidade de pôr em causa exatamente o enquadramento mental que fizemos –, a nossa base de apoio para podermos expressar-nos; a segunda, porque nos impele, pela velocidade com que as coisas se dão, a estar em permanente escrutínio da realidade, como se ela fosse apenas uma frágil corda bamba de onde podemos cair sabe-se lá para onde.
E poderia continuar daqui em diante neste exercício, mas para o que pretendo transmitir hoje, é suficiente elencar estas abordagens ao medo de uma realidade composta por biliões de factos que se dizem e contradizem biliões de vezes num curto período de tempo. É nesta realidade, feita daquelas quantidades de factos e respetivas contradições, que vivem os cidadãos do mundo civilizado. Fazer política é cada vez mais complexo, educar crianças é cada vez mais complexo, manter relações amorosas ou de amizade é cada vez mais complexo, liderar equipas é cada vez mais complexo. A realidade é complexa, o pensamento é complexo e, como diria o Professor Manuel Sérgio nos anos oitenta, precisamos rapidamente de uma ciência com um método integrativo para entendermos a vida. E foi assim que inaugurou a ciência da Motricidade Humana.
Daqui resulta um apelo à Ciência e à simplicidade que hoje deveria ser um desígnio para a vida privada e para a vida pública. Testar. Experimentar. Comprovar. Simplificar. Separar. Reciclar. Diria mesmo: respigar. Vencerá quem o souber fazer, quem souber encontrar no lixo o que verdadeiramente interessa consumir.
Agnès Varda, no ano 2000 retratou uma sociedade contemporânea de respigadores; dos que recolhem os desperdícios, dos que sabem escolher o que importa guardar, manter, consumir. A própria cineasta parece fazer o mesmo com as imagens que capta, olhando para as que os outros não querem ver ou deixam para trás. Os Respigadores e a Respigadora, o seu filme em modo de documentário, recebeu inúmeros prémios e obrigou-nos a pensar no fenómeno do desperdício, da quantidade. Agnès morreu no início de 2019, mas deixou a mensagem que hoje nos serve não só para lidar com o lixo, lato senso, como também com o lixo informativo. Não sei se muitos a conhecem, não sei se o seu nome se perdeu no meio da informação, e se assim foi aqui fica demonstrada a necessidade de a respigarmos do passado. Vivo com esta palavra dentro de mim, respigar, porque ela responde em parte ao exercício que precisamos de fazer nas nossas vidas. Respigar implica andar atrás, no encalço, no rasto de alguma coisa. Há uma convicção generalizada de que ganha quem vai à frente; atrevo-me a dizer que o mundo contemporâneo pode estar a fazer eclodir uma nova conceção de espaço e de tempo na sua relação com a ideia de sucesso, de vitória, uma conceção que permite que triunfe: quem consegue abrandar, quem consegue seguir na retaguarda para poder rastrear, separar, destrinçar, respigar; quem consegue identificar as poucas coisas que verdadeiramente têm significado e, nessa medida, estão mais próximas da verdade. O reduto de confiança que precisamos está nesta capacidade de respigar.
[Editorial publicado na edição de Outubro na revista Líder]