Antonieta: ‘Porque te estás a rir agora?’
Gabriele: ‘Porque a vida é feita de tantos momentos diferentes e, de vez em quando, chega o momento de rir, assim de repente, como um espirro… nunca te acontece?’
in Una Giornata Particolare, de Ettore Scola (1977)
Na 18ª Festa de Cinema Italiano, o cinema e a comida sentaram-se à mesa para brindarem à tradição e ao prazer de viver que tão bem definem o espírito italiano. Através dos ecrãs, filmes de todas as épocas regressam para celebrar a cultura italiana nas salas de espetáculo portuguesas, trazendo ainda eventos e acontecimentos fora das telas.
O Cine-Jantar em Cascais foi um dos destaques da programação deste ano. O evento aconteceu no dia 14 de abril, num conluio entre cinema e gastronomia para celebrar o centenário de Marcello Mastroianni, com a projeção do filme Una Giornata Particolare (‘Um Dia Inesquecível’), de Ettore Scola. As personagens principais, interpretadas por Sophia Loren e Mastroianni, interpretam um casal que se conecta inesperadamente, nos meandros de uma Itália fachista.
Stefano Savio, encarregue da Direção Artística da Festa, fez questão de sublinhar a importância deste filme nos tempos políticos que correm, por ser um dos primeiros a apresentar «grande denúncia à ditadura italiana, com os dois maiores atores do país». O teor político do filme e do festival no geral, «nestes dias pouco luminosos, torna-se de extrema relevância».
‘Um Dia Inesquecível’ ilustra não só várias classes sociais, como também o papel da mulher, o preconceito, a homofobia e a ditadura, entrelaçados com uma sensibilidade e ângulos calculados, que não deixam nada ao acaso: os olhares, o toque de mãos, tudo tem um significado e o mais importante fica mesmo por dizer, suspenso nos detalhes.
Marcello Mastroianni celebraria 100 anos em setembro de 2024 e deixou para trás um legado de filmes icónicos, muitos deles em contracena com Sofia Loren. Juntos, tornaram-se um dos pares mais lendários do cinema italiano, protagonizando mais de uma dezena de filmes ao longo de quatro décadas. A química entre os dois era inegável, como se pôde sentir no filme em exibição naquela noite, onde a sua interação ultrapassa um mero romance proibido.
‘A impressão maquinal é sempre inimiga da beleza’
A localização do Cine-Jantar foi prestigiada: a Casa de Santa Maria, no Coração de Cascais, é um perfeito exemplo de união entre beleza e tradição, que não deixou a modernização sobrepor-se. A chuva ameaçou em aparecer, mas o fim de tarde manteve-se seco, com o por do sol a pontilhar as nuvens sobre o mar e o Farol de Santa Marta. Estavam reunidas as condições para uma ‘noite inesquecível’.
Na Sala dos Arcos, uma frase de Raul Lino, que desenhou a Casa no ano de 1902, deixa clara a filosofia que pautou a noite: «A impressão maquinal é sempre inimiga da beleza, tanto pior quanto mais aparente for a ação da máquina, quanto menor for a intervenção do sentimento do artífice».
O evento seguiu a mesma premissa: desde o cocktail até ao jantar, tudo foi preparado com o cuidado de quem quer respeitar a tradição e essência italiana. O menu foi elaborado pela mão do restaurante Aqafarina, que deu primazia a massa fresca e ingredientes privilegiados, de origem italiana. Desde a burrata até ao pistachio, cada elemento foi cuidadosamente escolhido e pensado para fazer jus à verdadeira culinária italiana.
Luca Bastagli Ferrari, dono do restaurante, explicou estes detalhes e a importância de criar um menu à medida do filme que sucederia ao jantar. «A cozinha não é mais do que uma transformação da matéria-prima», explicou, num eufemismo que não diminuiu em nada a experiência gastronómica e que se pode, de certa forma, aplicar ao clássico a que se ia assistir.
O primeiro prato principal, Linguine all’Amatriciana, consiste no prato típico no filme e um clássico do dia a dia italiano. Já o Tagliatelle al Ragù Bianco delle Tre Rane faz alusão a um facto que seria novidade para quase todos os comensais: este era um prato tipicamente servido no restaurante que Leonardo da Vinci abriu com o seu amigo Sandro Boticelli, a Osteria delle Tre Rane (Taberna das Três Rãs).
Há quem diga que a ideia surgiu em 1468 no seguimento de uma proibição de dissecar corpos, imposta pelo Papa, mas os factos que existem apenas indicam que esta era uma estalagem visionária, em que os menus tinham imagens desenhadas por Boticelli, facilitando a compreensão de analfabetos. Também neste jantar se procurou criar ligações, não numa explicação para leigos, mas entre o imaginário cinematográfico e a gastronomia.
O momento e o lugar não poderiam ter sido mais bem escolhidos, uma vez que a comunidade italiana é uma das nacionalidades mais numerosas em Cascais, o que permitiu uma sinergia entre culturas e um paralelo entre os tempos.
A 18ª Festa do Cinema Italiano termina hoje em Cascais, mas continua nos próximos meses. O epicentro das atividades é em Lisboa, em locais como o Cinema de S. Jorge, onde é possível comprar livros vários de autores italianos, como Italo Calvino ou Elena Ferrante, e outras salas emblemáticas da capital.
Ainda assim, a programação não se circunscreve apenas a Lisboa, levando a cultura italiana a variados cinemas de Portugal: Porto, Braga, Setúbal, Alverca, Cascais, Beja, Funchal, Coimbra, Loulé e Odemira são algumas das localidades que recebem a Festa, entre abril e junho.
Conheça a programação completa da Festa do Cinema Italiano aqui.
Imagens: Vitória Estevão e Câmara Municipal de Cascais.