O que é ser humano numa realidade cada vez mais digital e o que tem de ser feito para reduzir o nosso impacto sobre o ambiente. Quais são os dilemas de uma relação entre homem e máquina e o que prevalece no mundo tecnológico, alimentado por uma enorme quantidade de dados?
O que salva a Humanidade é a sua própria natureza, empática, ingénua e humilde. A inteligência, afinal, nunca será artificial.
Cathy Mulligan é professora e presidente do Espaço Europeu de Investigação em Blockchain no Instituto Superior Técnico, onde dirige um Laboratório dedicado à investigação em Blockchain para o Bem Social e a Sustentabilidade. Em conversa com a Líder, fala da urgência de um novo modelo económico, digital, justo e sustentável, dos desafios para a construção do conhecimento tecnológico e científico e põe o dedo na ferida quando refere a concorrência, pouco saudável, e contraproducente, entre as instituições de ensino superior em Portugal.
“O meu objetivo na vida é contribuir para um acesso às tecnologias digitais para todos na sociedade, justo e equitativo”, esta é a sua afirmação. Como podemos fazer isso?
Ao pensar profundamente na forma como organizamos a sociedade. Atualmente ela está estruturada da forma como está porque era mais conveniente para a economia industrial, centralizada e controlada por grandes interesses financeiros. Hoje essa abordagem tem mais de 200 anos – está na hora da mudança! A economia digital pode criar um novo tipo de sistema económico, uma nova maneira de incentivar diferentes atividades em todo o mundo, que sejam sustentáveis e justas. Mas temos de ousar aproveitar a oportunidade enquanto há tempo. Não tenho dúvida de que temos pouco tempo para mudar a forma como os humanos interagem com o meio ambiente, e uns com os outros, antes que as mudanças climáticas cheguem. Fingir fazer um trabalho de sustentabilidade porque está na moda não é a resposta.
A evolução da Humanidade levou milhões de anos para chegar ao momento atual, enquanto a tecnologia evolui num ritmo voraz. Os especialistas afirmam que em 2029 o ser mais inteligente à face da terra não será o Homem, mas uma máquina AGI (Artificial General Intelligence). Que dilemas vamos enfrentar?
Irritam-me as frases tipo “o ser mais inteligente do mundo”. O que se quer dizer com “inteligente”?! Se significa que a Inteligência Artificial GPT (Guid Partition Table) é capaz de processar grandes quantidades de dados e fornecer análises/ previsões com base nesses dados, isso provavelmente já é verdade no mundo de hoje. Os computadores já fazem isso melhor do que nós. A maioria das nossas avaliações sobre a inteligência, são, mais uma vez, baseadas no que foi útil para a economia industrial. O nosso sistema educacional codifica o que é chamado “ser inteligente” e “ser educado”, mas temos a certeza de que essas são as definições corretas para o século XXI? Eu não tenho tanta certeza!
Portanto, acho que já estamos a enfrentar os dilemas de 2029, apenas não os estamos a admitir. Para mim, esses dilemas incluem (mas não se limitam somente a isso) o que significa ser humano num mundo digital? Quais são as melhores formas de proteger o mundo em que confiamos para sustentar a nossa capacidade de continuar a sobreviver como espécie? Quais são os melhores métodos de organização para reduzir o nosso impacto ambiental e garantir a partilha equitativa dos recursos?
No início deste verão, ouvimos as notícias de um engenheiro da Google que foi despedido por ter afirmado que o chatbot de IA (Inteligência Artificial) se tornou senciente, ganhou vida. Num momento de crise mundial, com a urgência de paz, saúde e bem-estar, a IA pode-nos salvar?
Em primeiro lugar, muitos engenheiros ligam-se aos seus projetos, e por isso não me surpreende que alguém da Google se tenha apegado tanto ao seu projeto de PNL ao ponto de achar estar a alcançar a senciência de uma criança. Os engenheiros criam coisas a partir do zero e esse processo é intenso e imensamente criativo. Costumo dizer que os engenheiros constroem o futuro, mas ter regularmente tempo de inatividade fora do trabalho é importante. Tomando conhecimento das notícias, sugiro que também tirem uma folga – parece-me que, neste caso, ele deve ter passado muito tempo no trabalho.
Voltando ao cerne da pergunta, no entanto, tanto os humanos quanto os computadores são francamente maus a prever o futuro – porque os dados do passado não nos ajudam a prever o que vai acontecer no futuro. Particularmente durante épocas de grandes mudanças, pode ser perigoso ficar muito dependente de conjuntos de dados prévios, e, na verdade, é isso que a IA faz. Portanto, não nos ajuda necessariamente ter um GPT que processa uma quantidade de dados. Profundidade de pensamento (humano), empatia, ingenuidade, criatividade e humildade na nossa busca por respostas, isso, sim, vai-nos salvar.
A IA, como qualquer outra ferramenta, é apenas uma ferramenta, não podemos contar com ela para nos “salvar”, somente nós nos podemos salvar. Ela pode ajudar, mas não devemos colocar a nossa esperança no que é, efetivamente, uma análise de dados extremamente avançada. Na essência, é o mesmo quando os povos antigos confiavam nos sinais das estrelas, a sua análise avançada de dados.
O mundo da tecnologia entre IA, criptomoeda, blockchain, NFTs, entre outros, traz à tona questões prementes sobre literacia digital. O que está a ser feito sobre isso?
Esta é uma excelente questão a ser levantada e realmente depende do país em que se está. A Finlândia, por exemplo, fez esforços significativos para que toda a sua população entendesse a IA. No Reino Unido, espera-se que os professores universitários contribuam significativamente, através de uma variedade de meios, para a educação da população em geral. Acho que isso é algo que pode ser útil para Portugal aprender a partir daí e fazer mais e garantir que o país obtenha um verdadeiro impacto do investimento feito no ensino e na investigação. Uma vez que os professores portugueses são funcionários públicos, penso que devem trabalhar em prol do povo português, contribuir para a formação alargada de toda a população (não apenas dos licenciados) e para o desenvolvimento económico do país, tal como é feito noutros países. No entanto, isso não parece ser sempre o caso por aqui.
Enquanto professora de Ciência da Computação do Instituto Superior Técnico e Diretora do recém-criado laboratório DCentral, como tem sido a sua experiência e quais os insights sobre a construção de conhecimento tecnológico e formas de implementação no nosso país?
Enquanto morei em Londres, sempre me surpreendi com a quantidade de portugueses que conheci; mesmo naquela altura parecia haver uma forte “fuga de cérebros” (braind drain) do país. A melhor coisa do Instituto Superior Técnico são os alunos, são fantásticos e muito inteligentes. No ano passado, gostei muito de trabalhar com eles e de vê-los a desenvolver as suas ideias e produzir alguns projetos extraordinários.
No que diz respeito à construção de conhecimento tecnológico e a sua implementação no país, acho que há muitas coisas boas em Portugal, na sua comunidade de investigação, mas há uma falta de interdisciplinaridade entre os tópicos de ciências e engenharia que acho que pode realmente beneficiar o país. Conectar a engenharia elétrica com a ciência da computação, através de métodos de pesquisa modernos, também seria extremamente benéfico, como, por exemplo, para a engenharia ambiental.
Outra questão é que as ligações entre as universidades do país são surpreendentemente escassas. A colaboração entre universidades é fundamental para o desenvolvimento de investigação a nível mundial. Acho que muitas das universidades portuguesas estão, cada uma, no seu canto, e não fazem coisas juntas. Isto significa que o ecossistema de tecnologia é retido, pois as diferentes universidades competem umas com as outras, em vez de trabalharem juntas para o bem comum do país. Acho que há muito foco na “grandeza” individual dos professores e pouco na sua contribuição para a comunidade, sociedade e economia portuguesas.
Penso que para desenvolver plenamente o ecossistema português de investigação e tecnologia é necessária mais humildade por parte da comunidade de investigação, mais dedicação aos alunos e ao que eles podem alcançar e a perceção de que ensinar não é um trabalho, mas uma vocação e um chamamento sobre o futuro do país.
No que diz respeito à Web3 e Blockchain, esta fragmentação também é, tecnicamente, um grande problema. Neste momento Portugal tem a oportunidade de recriar o sucesso que a Escandinávia teve, com o desenvolvimento do ecossistema de telecomunicações no início dos anos 90, mas como as instituições técnicas estão a competir umas com as outras (e mesmo internamente, dentro das instituições), isso é improvável. Isto significa que Portugal corre o risco de ser apenas uma economia de baixo custo, onde as pessoas podem encontrar mão-de-obra barata o que apenas aumenta a fuga de cérebros do país, a mesma que vivenciei em Londres.
Enquanto aqui estou, faço o meu melhor para ajudar os alunos a ter acesso às oportunidades de desenvolvimento que os seus cérebros merecem, esperando que ao dar essas oportunidades seja evitada, de alguma forma, essa fuga de cérebros.
Por Rita Rugeroni Saldanha
Este artigo foi publicado na edição de outono da revista Líder. Subscreva a Líder aqui: Revista Líder | Tema Central | Loja Online– LÍDER