Os Países Baixos não se explicam apenas com tulipas coloridas e moinhos mágicos. Pode falar-se da ousadia de um pequeno reino que foi império, ou de uma sociedade que abraça a liberdade com uma frieza quase clínica. Mas a chamada Holanda não é só um post de Instagram: é um laboratório social onde tradição e vanguarda se enfrentam olhos nos olhos.
O país ocupa a 15ª posição no Global Soft Power Index 2025, com uma pontuação de 58,7 em 100 — reflexo do seu forte prestígio internacional em áreas como educação, inovação, sustentabilidade e direitos civis. A sua reputação de tolerância e pragmatismo, aliada a uma máquina diplomática eficiente, sustenta a sua influência cultural e política muito além da sua dimensão geográfica.
No Índice de Democracia de 2024, elaborado pela Economist Intelligence Unit, os Países Baixos registaram uma pontuação de 9,0, sendo classificados como uma ‘democracia plena’, no 9.º lugar entre 167 países. Apesar da estabilidade institucional, o relatório aponta uma crescente tensão no discurso público, marcada por protestos de agricultores, críticas à política de habitação e à imigração, bem como pela ascensão de forças populistas no Parlamento.
Num país onde o mar é contido por diques e a sociedade por consensos, há também fendas que se alargam — entre a capital cosmopolita e o interior conservador, entre o progresso tecnológico e a exaustão mental de uma juventude sob pressão, os Países Baixos são um espelho polido da Europa contemporânea: ordenados mas inquietos, livres mas contidos, ricos mas em busca de sentido.
Este é o quarto artigo da mais recente rubrica da Líder, ‘O estado de uma nação em sete minutos’. Todas as quintas-feiras, traremos um retrato de um país, explorando sucintamente quatro dimensões: cultural, política, económica e social.
Cultura
Na pintura, Rembrandt pintou sombras com uma luz que parecia sair da alma, enquanto Van Gogh incendiou a tela com cores que não pediam permissão para existir. Ambos, à sua maneira, reinventaram a forma de olhar o mundo — um com a precisão do detalhe, o outro com a fúria da emoção.
A literatura neerlandesa é menos ruidosa, mas nunca menos profunda. Cees Nooteboom escreveu como quem sonha em várias línguas, e Harry Mulisch traduziu a culpa e o tempo num país onde a memória da guerra continua a sussurrar entre tijolos e tulipas. Annie M.G. Schmidt, por outro lado, deu às crianças um país paralelo, onde tudo podia ser possível — até rir de si mesmo.
Na música, os Países Baixos souberam combinar a introspecção do Norte com uma vibração universal. Da maestria barroca de Jan Pieterszoon Sweelinck, cujas obras para órgão influenciaram gerações, ao lirismo moderno de André Rieu, que popularizou a música clássica em palcos globais, o país revelou que a elegância e a energia podem coexistir.
No cinema construíram uma linguagem visual onde a contenção nunca anulou a ousadia. Cineastas como Marleen Gorris — a primeira mulher a vencer um Óscar com um filme em neerlandês — provaram que a delicadeza também consegue ser revolucionária.
Política
Os Países Baixos não são apenas o retrato de uma democracia estável, mas um produto de séculos de negociação entre liberdade e controlo, comércio e ética, água e terra. Desde a independência face a Espanha no século XVI, a nação construiu uma identidade assente no pragmatismo, no comércio marítimo e numa tolerância vigilante.
A monarquia constitucional, vigente desde o século XIX, articula-se com uma das democracias parlamentares mais antigas da Europa, marcada por um sistema de coligações e consensos.
No entanto, essa imagem de estabilidade não impede tensões internas. Nas últimas décadas, os Países Baixos assistiram ao crescimento de partidos populistas e anti-imigração, como o PVV de Geert Wilders, que desafiam a tradição de moderação e abertura. A morte do cineasta Theo van Gogh, em 2004, vítima de um atentado por motivos religiosos, e os debates sobre identidade nacional e liberdade de expressão marcaram uma viragem no discurso político.
O país tem enfrentado uma fragmentação partidária cada vez mais acentuada. Isto tem dificultado a formação de governos e revelado uma população dividida entre o cosmopolitismo urbano e um conservadorismo periférico crescente. A queda de vários governos devido a crises de imigração, ambientais ou fiscais — como em 2021 e 2023 — reforça essa percepção de instabilidade intermitente.
Apesar disso, os Países Baixos continuam a manter uma reputação internacional sólida enquanto Estado de direito, com instituições fortes e uma sociedade civil ativa.
Economia
Em 2024, o Produto Interno Bruto (PIB) dos Países Baixos atingiu 1.134.115 milhões de euros, representando um crescimento de 1,0% em relação a 2023. Este crescimento foi impulsionado principalmente pelo consumo governamental, que aumentou 3,1%, e pelo consumo das famílias, com um incremento de 1,1%. Além disso, o PIB per capita situou-se em 63.030 euros em 2024, destacando-se como um dos mais elevados da União Europeia.
A economia dos Países Baixos é diversificada e dinâmica, com setores chave como o transporte marítimo, liderado pelo Porto de Roterdão, e a indústria química e tecnológica. Empresas como a ASML e Royal DSM destacam-se globalmente em inovação, enquanto a agricultura, especialmente na produção de flores e produtos lácteos, também é um pilar importante.
O setor financeiro é robusto, com bancos como ING, ABN AMRO e Rabobank a solidificarem o país como um centro financeiro europeu. Amesterdão, em particular, beneficiou da transferência de empresas após o Brexit, reforçando sua posição no mercado global.
No entanto, o crescimento económico não foi uniforme a todo o território. Em 2024, a cidade de Arnhem implementou um programa piloto destinado a aliviar as dívidas de 50 famílias em dificuldades financeiras. Este projeto, com um fundo de 700.000 euros, visou apoiar um bairro desfavorecido, permitindo que as famílias superassem graves problemas económicos.
Sociedade
A taxa de natalidade nos Países Baixos tem mostrado uma tendência de declínio ao longo das últimas décadas. Em 2022, a taxa era de 1,487 nascimentos por mulher, indicando uma ligeira diminuição em relação aos anos anteriores.
Este declínio na taxa de nascimentos aponta para um envelhecimento da população neerlandesa, o que poderá ter implicações significativas no mercado de trabalho, sistemas de saúde e políticas de segurança social.
No que toca a habitação, para enfrentar o aumento dos custos, o governo neerlandês implementou a Lei de Renda Acessível (Affordable Rent Act) em abril de 2024. Esta legislação introduziu controlos de renda para habitações de segmento médio, visando proteger os inquilinos e melhorar a acessibilidade à habitação.
A lei utiliza um sistema de pontos para classificar as propriedades de arrendamento, determinando o valor máximo que os proprietários podem cobrar. Espera-se que aproximadamente 90% das habitações de arrendamento nos Países Baixos sejam abrangidas por este sistema.
A sociedade neerlandesa tem demonstrado um elevado nível de participação cívica, especialmente em questões ambientais. Em setembro de 2023, milhares de ativistas climáticos bloquearam uma auto-estrada em Haia, protestando contra os subsídios governamentais a indústrias dependentes de combustíveis fósseis.
Conclusão
Os Países Baixos parecem um laboratório europeu onde tudo consegue funcionar. Bicicletas a tempo, cafés com grandes liberdades, ruas com montras humanas e rendas medidas ao milímetro com uma régua do Estado. Contudo, por trás do verniz progressista, espreita um país que vota cada vez mais à direita, com o liberalismo nos genes e os populistas na sala de estar.
Assim, entre diques, canais e debate aceso, os neerlandeses vivem no equilíbrio instável entre o que sonharam ser e o que os tempos exigem que sejam — uma monarquia pragmática com crises de identidade perfeitamente calendarizadas.
Leia todos os artigos desta rubrica:
O estado de uma nação em sete minutos: o peso da Rússia no mundo
O estado de uma nação em sete minutos: o samba infinito do Brasil
Brexit, imigração e tarifas: o estado do Reino Unido em sete minutos