Vivemos tempos de exceção, de uma “tempestade perfeita”, entre a guerra na Europa, a pressão económica, uma crise sanitária que persiste e a fúria da natureza sempre sábia. Mas também vivemos dias extraordinários, em que a tecnologia se uniu ao Homem, a ciência e a medicina trouxeram esperança e as novas gerações levantam vozes e colocam o dedo nas feridas da discriminação e do estigma.
Neste início de 2023, colocámos o desafio a vários líderes: Que mundo queremos ter? Qual o caminho para um novo renascimento? Que lideranças precisamos? Como nos reerguemos do caos?
Paula do Espírito Santo, Professora Associada com Agregação do ISCSP/CAPP/Universidade de Lisboa, responde.
A entrada do Ano Novo vem, por regra, carregada de esperança, desejos, promessas individuais e coletivas de superação, renovação, resiliência, força para mais e melhor. São os votos normais. Contudo, a renovação do Ano também se faz, para além das suas dimensões aspiracionais, com a reflexão sobre em que medida podemos efetivamente alcançar metas, horizontes e patamares de exceção quando temos de partir do ponto em que estávamos e estamos.
Afinal são o presente e o passado que nos alavancam o futuro.
Ou seja, a questão que se coloca é: como fazer mais e melhor com o que temos e somos, aqui e agora?
Com a bitola do presente fazem-se contas privadas e públicas para remediar prejuízos. E com a esperança no horizonte, à entrada de 2023, entre o mundo que queremos ter e aquele que desejamos, parece haver um hiato gigantesco. Este hiato gera-se quando o tempo, à escala europeia e global, é de insegurança, incerteza política e económica, acentuados por um aparente final de pandemia, logo coadjuvado pelo tremendo choque e incredulidade pública, que se arrasta com uma guerra, sem fim à vista, que vem acompanhada de caos e devastação. Num plano de incertezas e com o cálculo e previsões possíveis, a nível financeiro, as medidas adotadas parecem panaceias de curto espetro, com resoluções do Banco Central Europeu. Estas são sustentadas em cálculos com vista a serem atenuantes dos impatos da crise, suportados, no nível imediato, no aumento de taxas de júri e no travão nas compras de dívida pública, com efeitos esperados de maior liquidez mas também de responsabilização das capacidades económicas e financeiras das economias soberanas da zona euro. Entre uma crise humanitária derivada de uma guerra que é condenada, genericamente, pela comunidade internacional, com uma escalada imprevisível de um conflito, que acentua fragilidades energéticas e económicas, sobretudo nos países fortemente dependentes do mercado russo, incluindo algumas das economias fortes da União Europeia, o inverno europeu promete trazer um dos piores infernos dos últimos anos, também e sobretudo no plano humanitário.
E o fim à vista da guerra simplesmente não parece vislumbrar-se.
E o espaço político alcança novos horizontes de promessas e panaceias que prometem a superação e resolução rápida e eficaz dos males que a democracia e as suas ferramentas centenárias, não parecem conseguir alcançar, no prazo de tempo que a urgência impõe. Estas soluções acabam por questionar e aproveitar-se, de forma pragmática política e eleitoralmente, das vulnerabilidades das ferramentas centenárias do Estado de Direito democrático, baseadas no respeito de liberdades individuais, coletivas e de imprensa, na igualdade, na separação de poderes, sustentadas estas últimas em pilares fortes que Montesquieu (1748), no seu L’ Esprit des Lois, preconizou. Soluções politicamente demagógicas alcançam espaço nas brechas institucionais que as imperfeições democráticas deixam à luz e em público, muitas vezes derivadas da intervenção de escrutínio de um quarto poder vigilante e quase atuante, o poder da informação e da liberdade de imprensa, em democracia.
E os vãos de erosão democráticos dão espaço ao fortalecimento dos novos poderes políticos e eleitoralistas e colocam sob tensão a resistência e a vitalidade dos alicerces do Estado de Direito democrático.
E o fosso entre ricos e pobres cresce, e crescem e expõem-se fraquezas sociais, sobretudo, aquelas que estão na base das desigualdades materiais que acentuam as fragilidades dos mais pobres, dos mais jovens, dos mais velhos, mas também das classes médias, fraquezas que são acompanhadas pelo afundar de esperança no alcançar de condições dignas de acesso a direitos essenciais como os direitos à habitação ou à saúde.
Perante um cenário politicamente desafiante, a resposta à questão sobre qual o caminho para um novo Renascimento, tendo em conta o aparente esgotamento e esvaimento de recursos e propostas democráticos, deve ser encarada de um ponto de vista cívico e político.
Ou seja, a resposta passa pelo amadurecimento do processo democrático, por via das instituições, das lideranças mais exigentes, da participação cívica assertiva, conhecedora, na linha da qual Dalton e Welzel (2014), na obra From Allegiant to Assertive. Citizens, preconizaram. Ou seja, a passagem de um conjunto de Nações relativamente passivas, do ponto de vista cívico, para a uma cultura política assertiva, baseada no conhecimento e na educação constitui um dado que as democracias ocidentais e a ciência política têm vindo a explorar, com demandas e exigências distintas, consoantes os níveis nacionais de maturação democrática. A resposta à questão acima (qual o caminho para um novo Renascimento?) passa, como passou no passado, pelo aprofundamento dos pilares que a Ciência, a Educação e a História da cultura política democrática tem apontado mas que, por vicissitudes também democráticas, nem sempre são devidamente aproveitadas e exploradas.
Ou seja, a reinvenção da democracia faz-se à medida que os processos de democratização se ajustam às novas necessidades e às novas exigências cívicas e políticas.
Aos maiores níveis de assertividade acoplam-se ou deviam acoplar-se lideranças públicas e políticas suficientemente esclarecidas e conhecedoras da importância das necessidades de transparência, da nobreza e entrega ao serviço público, pelo serviço público e eticamente ancorado. Assim podemos erguer-nos do caos, ou pelo menos ter os instrumentos necessários para avançar sobre bases e caminhos mais estáveis e convergentes com os interesses nacionais, das populações, das instituições, convergindo nos principais centros de decisão política, democraticamente eleitos, as decisões que são erigidas pelo povo e para o povo.