Durante décadas, assistimos ao ascenso das democracias liberais e à regressão das autocracias. Passámos a acreditar que as primeiras continuariam a prosperar. Era a esperança no célebre “fim da história” que Fukuyama proclamou. Mais recentemente, essa esperança foi golpeada. Por esse mundo fora, “homens fortes” como Putin, Erdogan, Xi Jinping, Duterte, Bolsanaro, Orbán e Trump conquistaram espaço e aceitação. Porque tantos autocratas geram fervor, mesmo em democracias que considerávamos estabelecidas? Razões sociais, tecnológicas e geopolíticas ajudam a responder à questão.
1.Entre as razões económicas estão a crise financeira, a impunidade de alguns dos seus fautores, o desemprego gerado pelo declínio de indústrias tradicionais, e as crescentes desigualdades entre ganhadores e perdedores da globalização. Estes fatores têm alimentado a acrimónia de amplas franjas da população, impelindo-as a abraçar entusiasticamente líderes com pulsões autocráticas. As promessas de retorno à grandeza de outrora (e.g., o renascimento de indústrias sem futuro) podem ser fantasiosas – mas energizam populações arredadas dos frutos do progresso.
Os populistas sabem tocar a nota certa para inflamar o fervor dessas pessoas – que ficam inebriadas por quem lhes promete resgatar o sentido de dignidade perdida. É neste domínio que narrativas antiglobalização e anti-imigração conquistam adeptos. O “homem forte” acalenta a esperança de multidões que se sentem revoltadas com a conduta de elites alegadamente corruptas, centradas nos seus próprios interesses, e cegas à realidade do “cidadão comum”. Paradoxalmente, a estes “homens fortes” que bradam contra a corrupção, até os seus atos corruptos e o compadrio (e.g., nomeação de familiares e amigos para importantes funções do Estado) são perdoados ou justificados!
2.O fervor autocrático também assenta em fatores sociais relacionados com a imigração e o crime. Para alimentar o entusiasmo populista, o autocrata insufla dados e contesta evidência. São estes medos que conferem sentido à construção de muros nos EUA, na Hungria, em Israel e por esse mundo fora. São também esses receios que conduzem tantas pessoas a acreditar em teorias da conspiração. A dureza destes “homens fortes” estende-se aos direitos das minorias, tomadas como ameaça aos valores tradicionais e ao suposto vigor macho de outrora. Quando Gideon Rachman perguntou a Konstantin Malofeev, ideólogo de Putin, como interpretava a essência do liberalismo ocidental, a resposta foi: “A ausência de fronteiras entre países e a inexistência de diferenças entre homens e mulheres”. Ao fazerem do nacionalismo e das tradições a essência da sua narrativa, os “homens fortes” inflamam amplas franjas da população descontentes e ameaçadas pelas mudanças económicas e sociais. Assim procuram legitimar a sua perpetuação no poder e enfraquecer as instituições.
3.Salvo raras exceções, os “homens fortes” são adeptos fervorosos das redes sociais. Através destas, comunicam com os eleitores sem a intermediação e o escrutínio dos media tradici0nais. A mensagem veiculada pode ser enviesada, falsa e manipuladora – mas, ao ser disseminada para amplas franjas de eleitores, é tomada como “verdade”. A forma como estas redes funcionam também conduz a que as pessoas acedam mais facilmente a “notícias” que confirmam as suas crenças do que a material informativo e opinativo que contraria essas “verdades”. Quando os media tradicionais dão conta da falsidade dos “factos” comunicados pelo populista, os crentes na sua veracidade apodam essas clarificações como fake news. Eis o supremo absurdo: os crentes e os autores das falsidades acusam quem as denuncia de serem disseminadores de fake news!
A comunicação direta entre o líder e os eleitores, nas redes sociais, também facilita o culto da personalidade em detrimento do papel das instituições democráticas e dos seus mecanismos de separação de poderes. Finalmente, em regimes mais autoritários, a Internet e as novas tecnologias são usadas para vigiar os cidadãos, monitorizar as suas atividades e opiniões, e censurar factos e opiniões inconvenientes para o regime e os “homens fortes”. Controladas as mentes, controla-se o poder.
4.A supremacia económica dos EUA e de outras democracias reforçava a legitimidade do regime democrático. Todavia, sob um regime totalitário, a China transformou-se numa potência económica. A constatação deste poderio reforçou a crença dos líderes chineses na supremacia do seu modelo. O prestígio assim conquistado ecoou em vários países – reforçando a crença numa alegada superioridade dos modelos comandados por “homens fortes”. Infelizmente, esta confiança ignora os custos para as liberdades de expressão e de imprensa – e subestima as tragédias humanas que, ao longo da história, marcaram regimes autocráticos. A perversidade da autocracia putiniana não deixa dúvidas.
Estes perigos suscitam algumas perguntas. As pessoas que, em democracia, sentem predileção pelas autocracias gostariam de viver num desses regimes? Ou sentem liberdade para defender uma autocracia precisamente porque têm o “privilégio” de viverem em democracia? Essas pessoas a quem democraticamente é concedida a liberdade de fazerem a apologia da autocracia prefeririam viver numa autocracia se a mesma fosse dominada por algum autocrata de sinal contrário? Não estarão essas pessoas a revelar soberba quando julgam que a sua autocracia predileta é melhor do que as outras? É bastante cómodo fazer a apologia da autocracia quando se vive numa democracia. Mas defender a autocracia sem estar disposto a viver sob o jugo da mesma é pouco corajoso.