Nos centros educativos em Portugal, onde jovens cumprem medidas de internamento atribuídas pela Justiça, reescrever destinos é uma aposta que mistura rigor e esperança. Entre muros e recordações de uma infância interrompida, o esforço dos Técnicos Profissionais de Reinserção Social (TPRS) é uma dança delicada entre o castigo e o sonho de um novo começo.
Sobre os centros educativos, os números ficam próximos de uma ode à mudança: em 2020, a Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) acompanhou 112 jovens durante dois anos, e cerca de 70% deles cultivaram novos caminhos, afastando-se do delito. Isso significa que, para cada três jovens, dois conseguiram transformar os seus destinos e ajudar a desenhar um futuro mais leve.
Os técnicos fazem o que podem com o que têm, seguram vidas no limite com mãos vazias, afinam e resolvem brechas num sistema que ainda não soube escolher entre punir e reabilitar. Contudo, além dos muros e arame farpado, a realidade que os espera é incerta. Depois da redenção, que lugar tem a sociedade reservada a estes jovens?

«Voltei a gostar de estudar» – cultivar saberes no solo da esperança
O pátio fervilha com o barulho dos matraquilhos, a bola a rodopiar entre mãos direcionadas para o cesto de basquetebol e um murmúrio constante de vozes juvenis a preencher os intervalos das aulas entre um jogo e outro. À volta, uma monitora e dois seguranças permanecem estoicos, como sombras leves a relembrar que não se trata de um recreio comum.
O Centro Educativo da Bela Vista (CEBV) não deixa de ser feito de contrastes. As grades à entrada deixam claro que porta estamos prestes a cruzar e o arame farpado no alto destoa da vista sobre o Tejo. Os canteiros ladeiam o percurso que leva a portas e mais espaços vigiados, enquanto em baixo as flores brotam com força, como se soubessem que ali é preciso crescer depressa.
Entre os muros do CEBV, a reintegração não é um conceito abstrato – é um processo vivo, moldado por relações, fracassos e pequenas vitórias diárias. Diogo Calheiros, 44 anos, supervisor dos técnicos do Centro, não tem dúvidas: «É tudo à base da relação». Não há disciplina imposta que substitua o vínculo humano, nem reabilitação possível sem uma reconstrução dos laços com a família e a comunidade. Apesar de efetuarem a faxina do estabelecimento, aprenderem a cozinhar ou a coser bainhas, é na reciprocidade com os técnicos que crescem em todas as dimensões.
A transformação não acontece num instante. Acompanhando a evolução de cada jovem, do primeiro dia até ao momento da saída, Diogo Calheiros testemunha essa luta interior. «Ver uma mudança real, o resgate da motivação para a escola e o reconhecimento dos próprios erros, é o que me atrai neste trabalho», confessa, com um olhar que reflete tanto esperança como responsabilidade.
Circula pelos corredores do Centro com a naturalidade de quem os conhece como a palma da mão e a urgência de quem nunca pode estar ausente. Há 25 anos que segura vidas à beira do abismo, atento a cada gesto, cada silêncio, amplificado por um auricular que nunca descansa. O impacto que tem nestes jovens mede-se nos olhos que se iluminam ao dizerem o nome «Senhor Diogo».

No recreio apertado daquelas paredes, B. e V. estão sentados num banco de madeira desvanecida, pequenos para os olhos do mundo, mas imensos no modo como olham em frente. Nenhum tem mais de 16 anos, e, no entanto, há uma inquietação antiga na forma como observam. A curiosidade e a impaciência misturam-se, como se o futuro estivesse já ali, ao alcance, mas ainda envolto em cortinas de pedra.
Hesita um instante e encolhe os ombros para esclarecer o que o levou a estar ali. «Tive muitos problemas lá fora. Cometi alguns crimes». Fala num tom de quem já disse isto muitas vezes. Questionado sobre o motivo, baixa os olhos, com a voz a tropeçar. «Sim. Tipo… Como é que eu posso explicar»? Não explica. Há coisas que se tornam mais difíceis quando são ditas em voz alta. Inclina-se ligeiramente para a frente, atento, e esfrega as mãos nas calças, como se tentasse apagar algo invisível, e começa a explicar o que foi mais difícil quando chegou ao Centro. «As regras são a pior coisa. Lá fora tinha menos». Ou quase nenhumas.
O vento agita as folhas dos canteiros, o cheiro a terra fresca cruza-se com a humidade de um dia que ainda não decidiu se há de ser quente ou frio. B. fala agora mais baixo, mas com mais firmeza, já lhe falta pouco para reencontrar a liberdade. «Aqui aprendi muito. Por exemplo a meter-me no lugar da outra pessoa, calçar os seus sapatos».
Acena, como se compreendesse, mas continua em silêncio, com um nó na garganta, faltando-lhe três anos para sair em liberdade. «Alguns roubos» trouxeram-no para a Bela Vista e são as atividades regulares com o Chapitô, em especial a capoeira, que mais lhe agradam. «De resto, não gosto de quase nada», atalha, num misto de resignação e enfado. Ergue o olhar, como se, por um instante, pudesse esquecer o peso das regras, dos erros, do tempo contado em meses e anos. «Gosto muito de jardinagem, estou no curso. Também já estive na eletricidade. Estou pronto para fazer qualquer coisa lá fora, quero trabalhar. Mas o meu objetivo é terminar o 12º ano. Voltei a gostar de estudar», sorriu. V. refere táxis ou obras como um futuro viável. Mas à parte das aspirações terrenas, ser futebolista e jogador profissional de basquetebol são os sonhos destes jovens e talvez consigam alcançá-los, além dos muros que os guardam, por agora.
O barulho dos matraquilhos faz-se ouvir outra vez, um golo gritado ao fundo. No céu, o sol rompe as nuvens, e por um instante, o pátio parece apenas um pátio, um lugar de miúdos a crescer.
Reintegração: como provar que a mudança foi real?
Apesar de hercúleo, o esforço tem dado frutos: a taxa de reincidência global dos jovens sob medidas tutelares educativas centra-se nos 11,6%, havendo também uma taxa de indícios de reincidência de 17,9%. A reincidência total centra-se, então, nos 29,5%. Os dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) dizem respeito a todos os jovens que saíram dos centros educativos ao longo do ano de 2020. Porém, os resultados revelam um aumento significativo da reincidência nesse mesmo ano, para os quase 30%, depois de um decréscimo da taxa geral, de 36% para 17%, entre 2016 e 2019.
Na biblioteca do Centro, sussurros quase inaudíveis acompanham o movimento de dois miúdos que, com os olhos ávidos, percorrem as estantes. Entre os clássicos, com nomes como Murakami e Harper Lee a marcarem presença, a expectativa de uma escolha óbvia é logo desfeita. Eles não procuram o que a maioria dos adultos consideraria ‘cultura’. Ao contrário, lançam-se em obras de fantasia e ficção, às vezes com capas fluorescentes, outras vezes com ilustrações que desafiam as suas realidades quotidianas.
A procura não é por sabedoria, mas por fuga. Fuga essa que não pede explicações, que não exige redenção. Entre páginas gastas e ilustrações improváveis, encontram um refúgio sem julgamentos, onde não há centros educativos, nem passados que pesam. Apenas histórias que os levam para longe, para terras onde o destino não está escrito e onde, por um instante, são livres sem precisarem de fugir.
No canto da sala, a Diretora do CEBV, Joana Gomes, observa tudo com uma calma vigilante. Está sentada no braço de um sofá, mas a sua postura não é de quem se isola. Está ao lado dos jovens, como uma presença discreta que acompanha, mas não se impõe. A sua proximidade é a chave da relação que tem com eles. Não está distante, nem próxima de mais, mas exatamente onde precisa estar, como uma lanterna suave iluminando o caminho. «Não se muda o comportamento do outro sem se criar uma relação», reforça a Diretora, que nos recebeu primeiramente no seu gabinete.
Nesse seguimento, faz questão de deixar claro que «está muito longe de ser um sistema punitivo». A transformação das antigas casas de correção em centros educativos não é apenas uma mudança de nome; é uma tentativa de ressignificar a abordagem a jovens em conflito com a lei. Contudo, por mais que se queira distanciar da ideia de punição, a verdade é inegável: estes adolescentes foram lá parar porque cometeram um crime.
A medida tutelar é o que os mantém dentro das grades. «Ninguém se pergunta onde é que vai parar um jovem de 15 anos que comete um assalto à mão armada, furto ou violação», comenta Joana Gomes. Ainda assim, é ali, no entremeio das paredes e onde o tempo se arrasta, que se joga a última carta para aqueles de quem, do lado de fora, poucos se lembram.

A realidade destes jovens é marcada pela semelhança das circunstâncias, todas elas forjadas em contextos difíceis. Quase todos, 98%, saíram de bairros sociais, onde as famílias são mais um reflexo do caos do que um alicerce seguro. Muitas vezes, é a própria família que os coloca nesta vida, outras acabam por surgir da falta de supervisão de pais que trabalham de sol a sol. O bairro engole os jovens e é difícil remar contra a maré numa jangada.
Há 26 camas na Bela Vista para 27 jovens, mas a sobrelotação não é a regra nos seis centros educativos do País. Ainda assim, todas as unidades operam na capacidade máxima. Apesar de não haver jovens em regime fechado naquela instituição, Joana Gomes esclarece que os regimes abertos e semiabertos apenas permitem atividades no exterior ou frequentar outra escola, mantendo-se a permanência maioritária no Centro. Cada pequena liberdade vai sendo conquistada a conta-gotas, com progressos e bom comportamento.
Mas há obstáculos que ultrapassam os portões do Centro. Muitas vezes, os laços familiares estão desgastados, os jovens sentem o estigma colado à pele e o regresso ao quotidiano desafia qualquer progresso feito. O primeiro passo para a reinserção passa, inevitavelmente, pelo núcleo familiar. As primeiras visitas domiciliares, tímidas e carregadas de desconfiança, são «momentos-chave». Joana Gomes acredita que, «quando a família retoma a confiança no jovem, ele próprio reencontra um caminho menos marcado pelo fracasso e mais aberto à reconstrução».
Transformações no fio da navalha, da reinvenção à falta de recursos
Diogo Calheiros gere com firmeza uma rotina que, apesar de ordem aparente, carrega tensões e desafios profundos a cada esquina. Enquanto o ambiente transborda brio, um alerta repentino no auricular corta o silêncio: uma altercação irrompe numa sala de aulas, protagonizada por um jovem cuja instabilidade psiquiátrica delicada exige intervenção imediata. Esse episódio, breve, mas revelador, encapsula a complexidade de um sistema que procura equilibrar disciplina, cuidado e reintegração.
«Os tempos mudaram», diz Diogo Calheiros, que observa que os jovens que ingressam no Centro hoje apresentam perfis bem diferentes daqueles que costumavam ser «os miúdos do bairro». Atualmente, os casos crescem, especialmente no que tange à saúde mental. Impulsividade, conflitos familiares intensos e problemas psicológicos marcam a jornada desses jovens.
Essa transformação evidencia uma mudança no perfil dos internados, que, segundo o supervisor, chega acompanhada de uma nova dimensão de desafios para a equipa. «Os profissionais estão sobrecarregados e a falta de recursos e formação específica agravam a situação» explica.

Ao contrário de outros tempos, os grupos não são trabalhados como um todo e sim caso a caso, com o objetivo de «transformar traços da personalidade, características de comportamento e trabalhar crenças disfuncionais», esclarece a Diretora. Cada perfil de delinquência encontra a resposta firme de monitores dedicados, mas a falta de recursos e a alta rotação de profissionais tornam o caminho mais difícil.
«Estes jovens são a fatia da sociedade com quem ninguém conseguiu fazer nada. É preciso uma intervenção muito especializada para que alguma coisa mude», adianta Joana Gomes.
Há alternativas em discussão. Criar programas mais flexíveis, ajustar horários e atividades às necessidades individuais, abrir unidades especializadas para os jovens com quadros psiquiátricos graves «e formação contínua. Sem isso, não há como acompanhar a complexidade dos casos», reforça.
Ainda assim, a Diretora repara que o trabalho se tornou mais pedagógico. «Há 30 anos, eram 50 jovens para um monitor. Hoje temos equipas especializadas em intervenção terapêutica e gestão de crises».
Para Diogo Calheiros, a entrega dos profissionais é inquestionável, mas falta suporte. «Se houvesse mais investimento, seríamos mais rápidos e precisos nas nossas intervenções». A ausência de dispositivos adequados para contenção em situações críticas, somada à necessidade de um acompanhamento psicológico mais intenso, pesa na rotina dos técnicos. Assim, veem-se obrigados a equilibrar, muitas vezes à margem das suas forças, o rigor das regras com a empatia essencial para lidar com jovens em crise.
«O desgaste é muito maior», sublinha o supervisor. No entanto, são esses mesmos técnicos a verdadeira força motriz dos centros educativos, aqueles que se aproximam dos jovens desamparados, que redefinem caminhos e, dia após dia, reconstroem possibilidades.
O impacto é evidente. Em 2022, dos 12 jovens que saíram do Centro Educativo da Bela Vista, 10 registaram uma integração efetiva. Num período avaliado de oito anos (2017 a 2022), verificou-se o aumento da integração efetiva no ano de 2018, atingindo uma percentagem de 91% de jovens integrados.
Fazer da vida o que a primavera faz com as flores
O regresso a uma liberdade excessiva e aos mesmos meios que os empurraram para a criminalidade pode fazer com que voltem a cair. O Centro prepara uma rede de apoio para cada jovem, de forma a potenciar a inclusão num mundo que os recebe pejado de preconceitos, seja para estudar ou trabalhar.
«Infelizmente, não temos muitas parcerias com empresas, gostaríamos e tentamos, mas é difícil conseguir estes protocolos. Informalmente, temos sempre um amigo que tem uma loja, barbearia ou restaurante que acolhe vários jovens daqui», reflete Joana Gomes, reforçando a reticência que existe por parte dos empregadores em dar oportunidades. A realidade é que, em algumas situações, os locais tiveram uma má experiência com estes jovens e a porta fecha-se, muitas vezes para sempre.

Nessa mesma ideia, de que sozinhos lá fora o mundo ainda pode ser um lugar estranho, Diogo Calheiros acrescenta que «a reintegração não se dá automaticamente. Sem um ambiente de apoio, tudo o que construímos aqui pode desmoronar-se». Entre a pressão da reincidência e as barreiras erguidas pelo preconceito, o jovem que sai do centro educativo carrega um novo compromisso: provar que a mudança foi real.
Para além das aulas, estes jovens têm um calendário preenchido, algo que a Diretora considera essencial. Um horário que começa às sete e meia da manhã e engloba rotinas de limpeza, arrumação e higiene pessoal. «Os jovens chegam-nos sem saber tomar banho ou comer corretamente com os talheres. É preciso ensinar tudo quase de raiz», desabafa. O dia fica marcado por várias aulas e momentos de reflexão em grupo, onde se discutem problemas, expetativas e pensamentos.
As atividades são ricas: o Chapitô, escola de artes circenses, visita o Centro regularmente e há workshops de hip-hop, capoeira e até contar histórias. É este último o favorito de Z., que, com 19 anos, está a cinco meses da liberdade. «Está quase, mas parece que, quanto mais perto estamos, mais devagar passa o tempo», diz entre risos. Sai do Centro todas as manhãs para frequentar uma escola pública. Está em regime semiaberto e diz não ser alvo de preconceito pelos colegas de fora, só de uma breve «curiosidade». Quer «acabar a escola, tirar a carta», depois logo se vê.
Não sonha alto, não por falta de ambição, mas porque aprendeu que o futuro se constrói devagar, um dia depois do outro. Afirma que o que mais mudou nele foi a impulsividade das suas atitudes. «Tenho de pensar mais antes de agir, para evitar consequências». O esforço é imenso, os recursos parcos. E, no meio disso, há miúdos como Z., que avançam sem pressa, sem garantias, mas avançam.
O mesmo fez Jaime Alexandre. Entrou cedo na Bela Vista e lá passou dois anos, tempo suficiente para perceber que, se não escolhesse um caminho, o mundo escolheria por ele. Aos 16 saiu com um curso técnico de jardinagem no bolso e a convicção de que não voltaria.
Hoje, aos 24, está em Massachussetts, nos Estados Unidos, a trabalhar por conta própria em construções. Não mexe em flores, mas trata a madeira, ergue estruturas sólidas, e transforma o nada em algo novo. Diz que no Centro aprendeu mais do que uma profissão – aprendeu a moldar o seu futuro e a aceitar que cada mudança leva o seu tempo.
Do outro lado do Atlântico, portador de um sotaque micaelense, Jaime relembra os tempos do CEBV e o papel de Diogo Calheiros no seu percurso. «Fez a diferença na maneira como se relacionou comigo. Só tenho coisas boas a dizer do Senhor Diogo», menciona, acompanhado de um suspiro de quem percebeu tarde, mas a tempo. Foi ele quem lhe ensinou a não se perder no imediato, a construir um caminho sem pressa.
A voz está tranquila, firme como alguém que encontrou o seu lugar. A reintegração não aconteceu num só momento, mas na soma de muitos. Pequenas escolhas, pequenos passos, até que o chão deixou de parecer escorregadio. «Às vezes o que realmente importa é agarrar a vida». E Jaime agarrou-a com as duas mãos.
Esta reportagem foi publicada na edição nº 29 da revista Líder, sob o tema Incluir. Subscreva a Revista Líder aqui.