Neste exercício de pensamento, reunimos alguns agentes da mudança, vozes da sociedade nas suas diferentes áreas para nos darem uma ideia para refazermos o Mundo. Imaginar que podemos começar tudo de novo e a partir daí criar, inventar, reconstruir. Ideias que podem ser peças de um enorme puzzle que gradualmente juntamos para nos podermos espantar com o resultado: um Admirável Mundo Humano. Afinal, que Mundo queremos nós?
Manuel S. Fonseca, Editor, deixa-nos a uma ideia para um Mundo ideal mais humano.
Dai-me uma jovem mulher… Se bem me lembro foi com este verso que começou o futuro, o futuro que ainda não chegou, da poesia portuguesa. Corria o ano de 1958, ainda eu não sabia ler, quando esse verso irrompeu como um relâmpago, trovão de ternura, tempestade de desejo, em O Amor em Visita. Tê-lo-á Herberto Helder escrito nesse mesmo ano?
Talvez o tenha sonhado um, dois anos antes. Mais improvável, e por inverosímil que pareça, talvez esse meio verso e os versos que logo, colher na boca, se lhe colavam, tenham vindo do futuro, de um futuro que os nossos eléctricos dedos de hoje mal sabem tactear.
Dai-me uma jovem mulher com sua
harpa de sombra e seu arbusto de sangue.
Com ela encantarei a noite.
E eis aqui, neste ritmo inexplicavelmente encantatório, de uma juvenil inocência que nenhuma palavra esdrúxula perturba, um futuro rasgado a crença, potência e uma insustentável extremíssima beleza. O que pode ser o futuro, que não seja esse desejo de absoluto e de beleza?
De onde pode vir o mundo mais humano pelo qual, a cada segundo, golpeados como César por punhais de «também tu, meu filho», tanto ansiamos? Quem, e como, nos resgatará do caos angustiante, labiríntico, do melhor e pior dos mundos de que o incompreensível presente em que vivemos nos faz tão cativos, como os agrilhoados cativos da vaga e escura caverna de Platão?
O futuro já está no melhor do nosso presente: eu bebo a mesma água do Paraíso que Steven Pinker nos serviu no seu Os Anjos Bons da Nossa Natureza. O futuro está nos prodigiosos poderes da Medicina que reinventa o corpo humano; o futuro está nessa engenhosa viagem pelo estupefacto cérebro humano, paisagem de líricos silêncios que nos revela que somos, agora, neste instante, tudo o que já fomos e tudo o que viremos a ser; o futuro está nessa alquímica, indecifrável, algorítmica I.A. de transbordante imaginação. É nesse mundo da ciência que se desenha o futuro: pletórico, imparável, capaz de encantar a noite e o dia, day and night, night and day, se a essa jovem mulher, que a ciência é, juntarmos as antiquíssimas harpas de sombra e arbustos de sangue. Juntemos ao futuro, a um futuro de gloriosa Ciência, os mortos do passado, as temporadas no Inferno dos poetas que morreram jovens.
Precisamos de voltar a falar com os fantasmas – são tão belos, tão criativos e imaginativos os fantasmas – para que nessa fusão estranha, talvez nocturna, a Ciência seja a nova nobreza. A poesia do passado, soubesse-o ou não, estava grávida de futuro; soubesse-o ou não, esperava os deslumbramentos da Ciência para sobre ela criar o mais humano mundo de sempre que este profético lema de Rimbaud antecipou: l’ élégance, la science, la violence!
Cada dia é um dia novíssimo, inaugural, por nele estar o mesmo Sol, a mesma Terra, a velha, emotiva e humaníssima esperança de uns olhos que se espantam. O mundo, esse mundo em que tudo começa de novo, o admirável mundo humano está nas nossas mãos, como nas mãos de Borges que escreveram estas linhas: «A uns trezentos ou quatrocentos metros da Pirâmide inclinei-me, peguei num punhado de areia, deixei-o cair silenciosamente um pouco mais longe e disse em voz baixa: Estou a modificar o Sahara.»
Este artigo foi publicado na edição de outono da revista Líder, que tem como tema Reborn from Chaos: The Path for a New Renaissance. Subscreva a Líder aqui.