O trabalho foi, durante muito tempo, encarado como um emprego – algo que fazemos em troca de um salário. Com o decurso do tempo, foi sendo tomado, por alguns, como meio para prosseguir uma carreira. Para outros, foi-se tornando importante para a identidade individual: o trabalho deixou de ser um emprego ou um instrumento de carreira e passou a ser uma vocação, ou um chamamento. Passou a incorporar uma componente de propósito com significado. Importa reconhecer que, ao longo dos tempos, sempre houve pessoas a trabalhar para simplesmente sobreviver, outras em busca de um percurso profissional bem- -sucedido, e outras com sentido de vocação. Mas este trio tem vindo a adquirir especial relevância, e a ser alvo de investigação nas décadas mais recentes, como consequência da mudança na natureza do próprio trabalho – cada vez mais processador de conhecimento do que de matéria física. Trabalhar com propósito transformou-se numa espécie de mantra. Parece, pois, que o trabalho passou a ser fonte de salvação – mas não podemos ignorar o seu potencial de perdição.
O trabalho como salvação
Na versão salvífica, o trabalho torna-se parte da identidade pessoal, mas também uma componente central da mesma. Esta faceta tornou-se tão premente que, com frequência, quando alguém se identifica, começa por dizer o nome e aquilo que faz. Nesta perspetiva, somos o que fazemos. O trabalho passou a incorporar uma componente de propósito. O propósito, a razão pela qual fazemos aquilo que fazemos, traz novidade ao trabalho: justifica-o. Porque fazemos o que fazemos? Por vocação (nascemos para fazer algo), pelo impacto que aquilo que fazemos tem para os outros, ou porque o que fazemos nos permite fazer parte de entidades coletivas que fazem sentido para a nossa identidade. O trabalho ganhou, pois, uma preponderância maior porque a nossa vida se começou a organizar, em forte medida, em torno do trabalho. E, se tanto trabalhamos porque desejamos, é conveniente que sintamos que o desejamos porque ele nos permite prosseguir um propósito.
A esta luz, e em suma, o trabalho oferece inúmeras oportunidades de desenvolvimento: pertença a uma organização com uma identidade positiva, oportunidades de aprendizagem pessoal, contribuição para a sociedade, impacto na vida dos outros, sentimento de orgulho e pertença. O trabalho acabou, portanto, por assumir uma posição central naquilo que somos: somos o que fazemos.
Numa certa forma de interpretação, numa sociedade progressivamente laicizada, o trabalho ganha mesmo uma dimensão espiritual: adquire uma dimensão que transcende a atividade laboral e que implica uma conexão com algo maior. No passado, e dada a dureza da maior parte dos trabalhos, esta dimensão transcendental não faria qualquer sentido. Todavia, em sociedades nas quais a religiosidade se foi perdendo, a dimensão espiritual saiu pela porta da Igreja e entrou pela porta da empresa. Espera-se, eventualmente, uma “fusão” entre a pessoa e o trabalho. O trabalho pode mesmo remeter para a dimensão de convergência entre a pessoa e a atividade. O processo tem ressonâncias com a explicação de Herrigel, em Zen e a arte do tiro com arco (2007):
“É um facto conhecido e comprovado pela experiência quotidiana entre nós, mestres arqueiros, que um bom arqueiro munido de um arco de resistência média atira mais longe que um arqueiro munido do arco mais forte, mas carente de espiritualidade”.
As empresas também contribuem para a criação de um zeitgeist em que a dimensão salvífica se materializa em processos como os programas de bem-estar e mindfulness. Esta dimensão, referida por Fukuyama em Liberalism and Its Discontents (2022), traduz uma progressiva espiritualização do trabalho – trate-se de uma genuína tentativa de elevar as pessoas, ou de uma tentativa de manipular as suas vontades para criar os já chamados “corpos dóceis”. Este excesso de (instrumental) preocupação com a felicidade dos outros pode, bem-entendido, tornar-se fonte de grande insatisfação. A capacidade de governar a alma dos membros de uma organização pode ser uma ferramenta utilitária usada para lhes extrair mais entrega ao trabalho – como a música permite extrair “mais leite de vacas contentes”! É então que o trabalho pode tornar-se não uma via para a salvação, mas uma fonte de perdição.
O trabalho como perdição
Porque a vida de muitos de nós se passou a organizar–se em torno do trabalho, a Pandemia obrigou-nos a reorganizá-lo, e mudou a maneira como o pensamos – face à vida em geral. Essa é uma das explicações da great resignation. A expressão foi criada por Anthony Klotz, um psicólogo organizacional que estuda a razão pela qual as pessoas abandonam os seus postos de trabalho. Uma possível explicação é que a Pandemia revelou outras formas de viver, mais compagináveis com o necessário descanso, a fruição das relações familiares, e a inserção na vida comunitária. Essa revelação conduziu um número significativo de pessoas a abandonar os seus trabalhos.
A grande resignação é um sinal contemporâneo de mal- -estar com o trabalho – apesar de tantas promessas de que o trabalho “salva” e traz felicidade.
Numa altura em que se debate a possibilidade de o trabalho desaparecer em função da introdução de sistemas de inteligência artificial cada vez mais sofisticados, eis que o trabalho continua a consumir uma quantidade de tempo exagerada na vida de muitos de nós. O trabalho tornou-se uma espécie de desporto radical, que consome tempo, mas entrega desafio, excitação, risco e recompensa. Por esta razão, o trabalho foi comendo tempo de outras atividades, nomeadamente o tempo de lazer e o tempo dedicado à família.
Esse envolvimento excessivo com o trabalho pode constituir um buraco negro sugador de todo o tempo.
O buraco pode ser especialmente escuro para o gestor sénior, para quem o trabalho pode tornar-se o alfa e o ómega da sua vida. O resultado é que, um dia, pode colocar–se a questão enunciada por Clayton Christensen: como é que cada um de nós mede a sua vida? Essa é a pergunta que importa colocar hoje mesmo, antes que seja tarde. Se a vida tem três facetas (família, trabalho, terceiro espaço), importa cultivá-las de forma harmoniosa. Quando o equilíbrio se rompe, alguma coisa se perde. Nesse caso, o trabalho pode tornar-se uma fonte de desequilíbrio.
A literatura acerca das implicações do trabalho sobre a saúde revela os malefícios do excesso do mesmo – assim como a toxicidade de más e abusivas práticas de gestão. Quando isso ocorre, o trabalho, em vez de trazer significado, pode acarretar alienação – ou mesmo, em casos extremos, a adoção de comportamentos ilegais por pressão da organização. Nos EUA, o Wells Fargo Community Bank estipulava objetivos tão elevados que milhares de empregados se envolveram em comportamentos fraudulentos para, precisamente, alcançarem os objetivos – e manterem o posto de trabalho. Este comportamento tem consequências pessoais, nomeadamente reputacionais.
O trabalho pode, então, tornar-se uma mancha estigmática na identidade pessoal.
Um amor de perdição?
Em suma, o trabalho pode ser uma fonte de crescimento, mas também uma forma de opressão e de sofrimento.
O amor laboral pode transformar-se em amor de perdição. As organizações estão, neste momento, confrontadas com uma escolha: oferecem trabalho com sentido e respeito pela pessoa humana, ou mantêm a toada que toma o trabalho como (quase) único centro da vida. A bifurcação pode conduzir a um futuro libertador, com mais flexibilidade e mais variedade de escolha; mas também pode conduzir a maior desigualdade e maior precariedade. As escolhas estão à nossa frente. A evolução tecnológica, acelerada pela Pandemia, está a criar novas formas organizacionais, um processo que discutimos num novo livro (Ágil: A transformação organizacional para o digital, 2022). Muitos de nós dispomos de possibilidades de escolha. Mas muitas pessoas (que escapam aos interesses dos académicos e dos jornais e revistas de negócios) vivem na corda bamba e desprovidas de qualquer sentido de autodeterminação.
É aos líderes (como muitos dos nossos leitores, e também a nós, académicos) que cabe particular responsabilidade, pois têm o poder de fazer escolhas que condicionam as escolhas dos outros. Importa, pois, que tomem decisões com sabedoria, ou seja, que façam escolhas que protejam os interesses das organizações, mas também a dignidade das pessoas. O futuro está a ser criado agora. Importa criá-lo bem porque é nele que vamos todos (ter de) viver.
Este artigo foi publicado na edição de verão da revista Líder. Subscreva a Líder AQUI.