No bunker de Hitler, de Joachim Fest (Guerra e Paz) é um livro impressionante, que se lê com horror. Algumas das passagens mais chocantes são aquelas que se referem à decadência de um ambiente de fim dos tempos. Nesses contextos radicais, as regras da civilização são ignoradas e o animal humano solta-se sem peias. Encontra-se o mesmo tipo de descrição numa extraordinária biografia de Pol Pot, Anatomy of a Nightmare, no qual se assiste ao mesmo clima de devassidão a tomar conta de uma Phnom Penh à beira de cair nas mãos do Khmer Vermelho.
Salvas as devidas proporções, os últimos dias de Trump foram marcados pela mesma impressão de fim de regime, um tempo em que as regras são suspensas e os defensores da velha ordem esbracejam de forma desesperada e desesperançada. Este ambiente político explosivo do bem contra o mal, moldado pelas especulações bizarras do movimento QAnon e pelo combate entre Proud Boys e Antifas, parece revelador da necessidade de revitalizar as instituições e aumentar a confiança do público nas mesmas, de modo a conter os extremismos.
Importa combater a ideia de que o problema são uns tantos outliers políticos e que, se esses forem afastados, tudo ficará resolvido. Infelizmente o problema é mais profundo: as instituições, golpeadas a partir dos extremos, estão a mostrar incapacidade de responder às críticas com criatividade e imaginação. Por cá, como se vê em casos como a progressão dos extremos, a morte de Ihor Homenyuk às mãos do Estado, ou a manutenção da campanha eleitoral quando tudo o resto parou, revelam instituições refugiadas em desculpas, legalismos e até assomos censórios. Esse caminho é, porventura, o melhor fermento para o populismo apocalíptico.
Por Miguel Pina e Cunha, diretor da revista Líder