Somos seres sociais – e frágeis. Durante tempos de abundância, podemos sentir-nos autossuficientes e imunes às vicissitudes da nossa existência. E, frequentemente, fechamos os olhos às fragilidades dos outros e continuamos as nossas vidas.
O mundo organizacional é especialmente atreito a este tipo de ilusão. Em algumas organizações, a fragilidade e o sofrimento são tomados como um fator distrativo, um empecilho à produtividade, à eficiência e aos resultados. Há momentos, porém, em que as lideranças se dão conta da fragilidade coletiva e da necessidade de cuidar das pessoas para cuidar da empresa. Infelizmente, esse sentido do dever de cuidar é por vezes instrumental e nada genuíno. A pandemia COVID foi um desses momentos em que a “compaixão” instrumental se manifestou. Andrew Hill escreveu no Financial Times, em 18 de janeiro de 2021, que a crise gerada pelo coronavírus havia transformado ideias de gestão sensatas em clichés de liderança:
“Tomemos a Humanidade, a empatia e a compaixão. No final [de 2020], quase todos os CEO que entrevistei davam mostras de falsa modéstia quando afirmavam como a crise os havia ensinado a prezar o stresse que se abatera sobre os empregados e a liderar com um toque humano. Isso fez-me pensar porque não tinham usado esses ingredientes antes da pandemia”.
Segundo Hill, os gestores que haviam subitamente descoberto a compaixão durante a pandemia deviam torná-la uma prática permanente. Muitos não o fizeram. Como se tem observado, logo que a ameaça pandémica se desvaneceu, os “bons sentimentos” desapareceram também. É pena! E é preocupante – sobretudo em organizações que se vangloriam da sua responsabilidade social e das suas práticas de diversidade, equidade e inclusão.
O quotidiano das organizações – e das nossas vidas – está repleto de momentos de stresse, dor, sofrimento e dificuldade. As atribulações da vida pessoal (sobretudo de quem vive na corda bamba) não são deixadas fora da porta da entrada da empresa. E as vicissitudes do trabalho não são deixadas dentro das portas da mesma. Algumas organizações ignoram essa realidade. As pessoas receiam assumir e partilhar as suas fragilidades – com receio de veicularem uma imagem de “colaboradores” menos resilientes e menos competitivos. Algumas dessas organizações até alardeiam programas de felicidade no trabalho. Presumindo que a felicidade contribui para os resultados, quase obrigam as pessoas a mostrar felicidade e a esconder agruras.
Mas essa crença é pouco mais do que uma ilusão de gestão. As pessoas aprendem a expressar felicidade – ao mesmo tempo que temem exteriorizar dores e se tornam cínicas perante a organização e a sua gestão. Se sentirem que é vantajoso expressar felicidade nos estudos de clima organizacional, mesmo que não a sintam, não hesitam em fazê-lo. O caso da Wells Fargo, que media o rácio de felicidade no pressuposto de que pessoas felizes são mais éticas, é paradigmático. Ao longo de anos, o rácio foi melhorando – enquanto os funcionários eram submetidos a pressões intensas para cumprir objetivos. Resultado: um escândalo ético de proporções monumentais, que custou milhares de milhões de dólares de multas e compensações. Estes fenómenos remetem para o que o sociólogo Wright Mills designou “sociologia bovina”: usar narrativas de gestão para extrair “mais leite de vacas contentes”. Ou seja: adotar a retórica da compaixão para incrementar a produtividade.
Não me interprete mal! Inúmeras organizações e lideranças estão genuinamente preocupadas com as pessoas.
John Chambers, que foi Chairman e CEO of Cisco, instituiu um sistema que lhe permitia tomar conhecimento, em 48 horas, de quem na empresa, em qualquer parte do Mundo, experienciava um problema severo na sua vida. Logo que informado, Chambers contactava pessoalmente o colaborador em causa e disponibilizava apoio.
As lideranças responsáveis estão cientes de que a sustentabilidade da organização depende da genuína preocupação com as pessoas e o desempenho da empresa. Num dado momento, pode ser necessário sacrificar o bem-estar das pessoas para garantir o desempenho sustentável da empresa. Outras vezes, importa sacrificar os resultados e cuidar das pessoas (sugestão: explore o que fez a liderança da Reuters nos EUA logo após o ataque terrorista às Torres Gémeas, onde estava instalada no 11 de setembro). Todavia, a sustentabilidade das organizações depende do foco permanente em ambas as dimensões. Esse é um enorme e complexo desafio para as lideranças.
- Perdoe-se-me a publicidade: leitores interessados em aprofundar a complexidade do tema podem ler Organizational Compassion: A Relational Approach (no prelo, pela Routledge), de que sou coautor juntamente com Ace Simpson, Miguel Pina e Cunha, Stewart Clegg e Marco Berti.
Este artigo foi publicado na edição de primavera da revista Líder com o tema de capa Handle with Care – O Poder da Fragilidade. Subscreva a Líder aqui.