Num país que se orgulha do seu progresso, há ainda 1,8 milhões de rostos que vivem no fio da navalha – 16,6% da população portuguesa continua em risco de pobreza. O número é ligeiramente inferior ao de 2023, mas a ferida permanece aberta. As estatísticas descem, mas a realidade, para muitos, continua insuportável.
O Relatório ‘Portugal, Balanço Social 2024’, uma iniciativa da Fundação ‘la Caixa’ e do BPI, com investigação da Nova SBE, traça um retrato cru das desigualdades no país. As conclusões são inequívocas: pobreza não é apenas ausência de rendimento – é um modo de vida imposto, feito de escolhas impossíveis, privações constantes e invisibilidade.
Trabalhar e sobreviver: a face oculta da precariedade que alimenta a pobreza
A pobreza já não é exclusividade dos desempregados — tornou-se a realidade de quem tem um trabalho, mas não tem segurança. Quase 10% dos trabalhadores portugueses vivem abaixo da linha da pobreza, enquanto 40% dos desempregados enfrentam esta condição. A precariedade, com contratos temporários e salários insuficientes, aprisiona milhares numa luta diária pela sobrevivência, onde receber um ordenado no fim do mês não significa o fim da angústia. O emprego, por si só, já não é garantia de dignidade.
Famílias partidas: monoparentais e numerosas
Nos lares onde a responsabilidade pesa sobre uma só cabeça, a pobreza cresce com força. 31% das famílias monoparentais vivem em risco, um número que não fica longe dos 28% em agregados com três ou mais filhos. Nestas casas, o esforço é redobrado, mas o apoio social continua insuficiente. O custo da habitação consome mais de 40% do rendimento para 26% dos lares pobres, e, mesmo assim, muitos vivem em casas que se congelam no inverno e se transformam em fornos no verão — refúgios precários de uma luta diária contra a penúria.
O papel ambíguo das transferências sociais: um escudo que ainda deixa brechas
As transferências sociais evitam que Portugal tenha uma taxa de pobreza superior a 40%, baixando-a para 16,6%. Um impacto notável, mas insuficiente para apagar a urgência do problema. Para erradicar a pobreza seria necessário um esforço orçamental de quase 20 mil milhões de euros, muito longe dos atuais 3,5 mil milhões investidos em apoios sociais. A equação permanece desequilibrada, com um abismo entre o que é feito e o que é necessário.
Sem teto, sem abrigo: a crua realidade de mais de 15 mil portugueses nas ruas
A pobreza toma forma nas ruas e praças onde mais de 15 mil pessoas já encontraram o chão como única cama. Não são números frios, mas rostos humanos, marcados pela desumanização e pelo abandono. Mesmo num país que se quer moderno e solidário, milhares caminham invisíveis entre a Baixa lisboeta, estações de comboio e parques onde a dignidade se esconde em bancos de pedra. Um contraste brutal entre a promessa do progresso dos anos 2000 e o fracasso na inclusão social.
Crianças em risco: fome, frio e um futuro que teima em fugir
São quase 350 mil crianças a crescer num Portugal onde faltar uma refeição quente e o aquecimento em casa é mais do que uma escassez — é uma realidade amarga. A saúde dentária, indicador silencioso da desigualdade, é um luxo inalcançável para 43,2% das pessoas pobres, que sofrem de mais doenças e maior fragilidade. Um quarto das famílias em situação vulnerável avalia a sua saúde como má ou muito má, um reflexo claro do peso que a pobreza impõe desde os primeiros anos de vida.
Além disso, a escola continua a ser o maior divisor social do país. Quem não vai além do ensino básico tem um risco de pobreza superior a 23%, enquanto os diplomados do ensino superior reduzem esse risco para pouco mais de 6%. Esta não é uma mera questão académica — é a linha que separa o acesso a oportunidades, a esperança e a mobilidade social. Apenas 11% dos mais pobres completam o ensino superior, num ciclo vicioso que mantém a pobreza enraizada e dificulta o futuro.
Ilhas esquecidas no meio do Atlântico: Açores e Madeira, periferias de uma periferia
Nos Açores, o risco de pobreza ultrapassa a média nacional em quase oito pontos percentuais; na Madeira, a diferença ronda os dois e meio. Nestes arquipélagos, o isolamento geográfico agrava um isolamento social, com dificuldades no acesso a consultas médicas e à alimentação básica. Para muitos, garantir uma refeição proteica a cada dois dias é uma luta diária, uma batalha longe dos olhares do continente e das políticas públicas eficazes.
Redistribuição e justiça social: a vontade popular que não pode ser ignorada
Entre os portugueses, a confiança nas instituições cresceu lentamente desde 2008, mas mantém-se uma linha clara de descontentamento. A polícia surge como a entidade em que mais se acredita — talvez por ser vista como a última barreira de proteção numa realidade de insegurança crescente. Já os políticos e os partidos políticos continuam a ocupar o lugar de maior desconfiança, reflexo de um desgaste profundo que não cede, sobretudo entre os que vivem com menos recursos.
A satisfação com a democracia também melhorou, ainda que a distância entre os mais ricos e os mais pobres se tenha reduzido, permanece um fosso a lembrar. Em 2024, quase um em cada cinco dos mais pobres continua insatisfeito com o funcionamento do regime democrático — uma insatisfação que é, por si só, um sinal de alerta para quem governa.
Por outro lado, a maior convergência é na percepção sobre a necessidade urgente de reduzir as desigualdades económicas. Mais de 80% dos portugueses defendem que o Estado deve intervir para corrigir as diferenças de rendimento — um consenso quase unânime entre os mais desfavorecidos, onde esse valor sobe para 91%. O clamor por justiça social permanece firme, apesar das políticas e dos discursos que nem sempre respondem à urgência desse compromisso.
Portugal caminha, por vezes hesitante, entre avanços e recuos, mas as vozes que clamam por igualdade, dignidade e esperança não podem continuar a ser apenas números em relatórios. São vidas que exigem respostas concretas — antes que a fenda social se torne uma ferida irreparável.