Num país onde a Cultura continua a ser o parente pobre da governação — lembrado à pressa em tempos de prémios, festivais ou polémicas —, é de saudar que a política cultural local tente afirmar-se com substância. O Caderno de Políticas Culturais Autárquicas, coordenado por Rui Matoso e apresentado no âmbito da Convenção MIL 2024, é um desses documentos raros que não vêm de cima nem têm pretensões vagas: vêm do terreno e propõem soluções concretas.
Com as eleições autárquicas de 2025 no horizonte, e num momento em que os programas políticos se preparam para mais uma temporada de promessas genéricas, este caderno procura recentrar a discussão naquilo que muitas vezes se apaga: a cultura como eixo da cidadania e da coesão territorial. Em vez de ‘eventos culturais’, fala-se de direitos, acesso, planeamento e investimento estratégico. A ideia não é colorir a agenda — é dar-lhe estrutura.
Do diagnóstico à proposta: quando a cultura é levada a sério
O documento resulta de um exercício cívico partilhado, com contributos de artistas, associações, investigadores, técnicos e cidadãos. Mais do que um manifesto, é uma ferramenta que pode — e deve — ser usada pelas concelhias partidárias para pensar o município como espaço de inovação, pluralismo e sustentabilidade cultural.
As áreas abordadas são claras e pertinentes: democracia e cidadania cultural, diversidade e coesão social, o direito à cidade, financiamento, planeamento estratégico e o papel das câmaras municipais na programação e mediação cultural. Não se trata de um catálogo de desejos: são propostas fundamentadas que partem do que existe, apontando caminhos para um futuro mais justo e mais participado.
A cultura não pode continuar a ser tratada como um apêndice festivo das autarquias — algo que se resolve com uma verba residual, dois concertos e um cartaz. O caderno lembra que a cultura não é um luxo nem um ornamento político. É um campo onde se joga a democracia quotidiana, onde se decide quem pertence, quem tem voz, e que formas de vida são reconhecidas num território.
Se for lido, discutido e aplicado, o caderno pode ajudar a inverter a tendência de apagamento da cultura local nas agendas políticas. E talvez, entre promessas de requalificações, mobilidade e mais habitação, surja finalmente um lugar sério para a cultura — não como entretenimento, mas como política pública. Há ainda uma proposta para a criação de uma coligação de munícipios pela democracia cultural. A petição pode ser assinada aqui.