José “El Pepe” Mujica é um exemplo inigualável de resiliência. O antigo presidente do Uruguai liderou nos anos pós-ditadura e fez parte do que pode ser considerada a revolução social pioneira daquele país. Hoje em dia, dedica-se a observar os prazeres mundanos vida, sem abandonar o olhar sagaz com que analisa a sociedade e a política.
Aos 89 anos, continua a cultivar crisântemos e outras flores, da mesma forma que fazia quando era guerrilheiro nos anos 60 e lutava pela mudança no país, então mergulhado numa ditadura militar.
Naquela que disse ser a última entrevista da sua vida, ao jornal uruguaio Búsqueda, há umas semanas, o revolucionário revelou estar a perder a batalha contra um tumor no esófago, diagnosticado em abril do ano passado. «Quero despedir-me dos meus companheiros e compatriotas. O que peço é que me deixem tranquilo», disse na entrevista, num áudio partilhado no seu perfil de Instagram.
Deixou palavras emocionadas, mas seguras, com uma calma que lhe é característica. Garante que «o seu ciclo chegou ao fim».

Como legado, deixa uma eterna e incansável luta pelo socialismo e igualdade. José Alberto “Pepe” Mujica Cordano nasceu em 1935 em Montevideu, onde viveu e seguiu as passadas do seu pai na agricultura. Interessou-se pela política com a motivação de «melhorar a vida da sua sociedade» e nos anos 60 e 70 foi um dos líderes do movimento de esquerda Tupamaros, inspirado pela Revolução Cubana, que se opunha ao governo militar do Uruguai de então.
Capturado em 1972, passou quase 14 anos na prisão, incluindo longos períodos de confinamento solitário. Diz-se que conseguiu fugir duas vezes, sendo recapturado, e que sobrevivido a intensas torturas. Após o regresso do Uruguai à democracia, em 1985, Mujica foi libertado ao abrigo de uma lei de amnistia e transitou gradualmente para a política tradicional.
A bordo da coligação social ‘Frente Ampla’, Mujica foi Ministro da Pecuária, Agricultura e Pescas antes de ser eleito presidente em 2009. O seu mandato, que durou até 2015, ficou marcado por reformas progressistas, incluindo a legalização da marijuana, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e o direito ao aborto, bem como políticas de combate à pobreza e à desigualdade social.
Aqui resumimos alguns ensinamentos que o emblemático lutador socialista nos tem deixado ao longo dos anos.
«Ou se é feliz com pouco ou não se alcança nada»
Mujica critica amplamente o capitalismo e a sociedade de consumo em que vivemos. Mais do que pregar estes ideais, personificou e honrou-os. O seu estilo de vida austero, optando por doar a maior parte do seu salário quando era Presidente e viver numa pequena casa rural em vez de no palácio presidencial, valeu-lhe admiração internacional. É mesmo considerado por muitos o ‘Presidente mais pobre do Mundo’.
Ou se é feliz com pouco e leve de bagagem, porque a felicidade está dentro de nós, ou não se alcança nada.
Sempre se opôs à acumulação de riqueza e defende que devemos criar a nossa própria subsistência. No documentário Human, esclarece que não é apologista da pobreza, mas sim da sobriedade, fugindo ao «consumo supérfluo». Segundo noticia a BBC América Latina, detinha em 2012, em conjunto com a esposa, Lucía Topolansky, cerca de 200.000 dólares: a sua quinta nos arredores de Montevideu, dois velhos carros Volkswagen “Beetle” e três tratores.
«O que proponho é dar as costas ao mundo dos desperdícios, dos gastos inúteis e das casas impressionantes que precisam de dezenas de empregados. Para quê? Não precisamos disso, podemos viver com muito mais sobriedade e gastar os recursos em coisas que de facto são importantes», referiu.
Em contraponto ao capitalismo, defende que a vida não é só trabalho e que deve existir espaço para sermos livres, gastar tempo com coisas que nos motivam. «Quando compramos uma coisa, não estamos a pagar dinheiro por ela. Estamos a pagar com o tempo de vida que tivemos de usar para ganhar esse dinheiro», diz.

Das relações à política: «o amor é o motor da vida»
A sua vida ficou marcada por violência e solidão, ao ter passado muito tempo preso. Sobreviveu a um tiroteio e a «sete anos sem ler um livro», derivado do tempo que passou na solitária. Defende acerrimamente que são as dificuldades da vida que nos moldam e fazem crescer, sendo inevitável aprender mais com «a dor do que a bonança». «Pode-se cair e voltar a levantar. Vale sempre a pena recomeçar, uma ou mil vezes».
Apesar das amarguras do passado, não sabe viver de outra forma que não amando a vida e o que de mais simples se pode tirar dela: o amor. «O amor é o motor da vida. Às vezes encontramo-lo, mas sempre o perseguimos», defende.
Foi este sentimento que o moveu e até na política reconhece ser essencial. Considera a preocupação pela sociedade a prioridade e que devemos olhar para o que falta ao próximo. «A política não pode ser um instrumento para comprar riqueza. Tem de ser um instrumento para costurar o amor social», afirmou, numa entrevista ao Globo Show.
Sigo vivo por milagre e, acima de tudo, amo a vida.
A vida partilha-a com Lucía, companheira de longa data, atual senadora e ex-Vice-Presidente do Uruguai. Foi na resistência política que se conheceram a guerrilha uniu-os para não mais separar, tendo enfrentado prisões, perseguições e a clandestinidade. Casaram-se em 2005.
O populismo cresce por falta de lideranças coesas
Apesar do seu delicado estado de saúde, ‘Pepe’ continuou a dar entrevistas ao longo dos últimos anos, dizendo sempre o que pensa – por vezes com poucos filtros. Critica o populismo que se alimenta de um ‘economicismo’, defendendo que «se está a perder o sentido democrático da política» e de governança.
«Estes populismos de direita têm muito a ver com o desaparecimento dos partidos. A política reduzida à aparição de grandes indivíduos que vão resolver tudo. Essa mitologia está a substituir o esforço coletivo dos partidos», referiu, em entrevista à CNN Brasil.
Tem opiniões fortes sobre líderes políticos como Donald Trump e Vladimir Putin e afirmou mesmo que a guerra da Ucrânia seria facilmente evitável. «A Europa perdeu a sua personalidade. Está a comer uma guerra desnecessária com a Ucrânia. Esta poderia ter sido evitada há 15 anos», disse Mujica ao jornalista espanhol Jordi Évole, num excerto de uma entrevista por publicar, gravada há seis meses. «Encerramo-nos nos chauvinismos nacionais e nas preocupações pela potência das nações, sobretudo nos países mais fortes», diz.
Imagem destaque: Getty Images / Tomas Cuesta
Imagens corpo do texto: Instagram de ‘Pepe’ Mujica