Será que a celebração do pensamento ético e criativo, bem como a capacidade de questionar a ação humana são compatíveis com o processo científico? O humanismo, como movimento cultural e intelectual, emergiu no Renascimento europeu como uma celebração da capacidade humana de pensar, criar e questionar. Em contraste com a visão mais teocêntrica do Mundo, que colo – cava a divindade no centro de tudo, o humanismo promove a importância da racionalidade, da arte e da educação. No entanto, esta busca pelo conhecimento entra muitas vezes em conflito com dogmas religiosos e as realidades inquestionáveis do poder estabelecido.
A Ciência procura a compreensão da Natureza. Baseia-se na observação, na experimentação e na análise rigorosa para perscrutar os segredos da vida e do Universo. A revolução tecnológica tem impulsionado avanços extraordinários em áreas como a Genética, a Física Quântica, ou a Inteligência Artificial. No entanto, as Ciências mais exatas e objetivas na sua abordagem (Matemática, Medicina, Engenharia) podem parecer demasiado factuais e incapazes de abordar questões mais profundas. Desumanizadoras.
A Ciência questiona o mundo. O humanismo questiona o Homem e a sua ação. Serão irreconciliáveis ou complementares?
Uma das obras significativas neste renascimento humanista, é a do Neurocientista António Damásio. Com base nas suas experiências em doentes neurológicos afetados por lesões cerebrais, o Cientista demonstra como a ausência de emoções pode prejudicar a racionalidade. Os seus dados que demonstram como a emoção contribui para a razão e para o comportamento social, oferecem uma nova perspetiva acerca do papel das emoções e dos sentimentos: um elo entre o corpo e as respostas fisiológicas que visam a sobrevivência, por um lado, e a consciência, por outro.
O seu famoso livro, O Erro de Descartes (1994), discute as dúvidas de um Neurologista acerca de como testar a hipótese de que as emoções desempenham um papel fundamental no comportamento racional humano, a partir da história de Phineas Gage, o famoso trabalhador do séc. XIX que sofreu alterações comportamentais após lesão cerebral. Através da análise sistemática de pacientes e da experimentação neuropsicológica com animais de laboratório, o autor (e a sua esposa, Hanna) mostra como as emoções são indispensáveis na génese e expressão do comportamento, e para a racionalidade.
O Erro de Descartes questiona a teoria de René Descartes, célebre Filósofo que enunciou a frase “Penso, logo existo” contrapondo o dualismo cartesiano, no qual a alma (razão pura) é independente do corpo e das emoções, e atualizou-a para “Existo (e sinto), logo penso.” Igualmente profundo no seu humanismo como no aspeto científico, Damásio defende uma fusão do estudo Neurobiológico com a investigação Neuropsicológica, numa abordagem integrada das emoções e da razão. Escrito com clareza e elegância, a obra mudou para sempre a visão que temos da relação entre mente e corpo.
A Ciência, quando abordada com uma mentalidade humanista, pode servir como um meio poderoso de alcançar valores humanos fundamentais, como compreensão, compaixão e empatia e desempenhar um papel crucial em questões éticas e morais. A Medicina moderna gera soluções que aliviam o sofrimento humano e prolongam a existência humana, abordando as necessidades básicas das pessoas e proporcionando-lhes uma melhor qualidade de vida. A inteligência artificial permite automatizar tarefas repetitivas, concedendo espaço e tempo para atividades mais criativas e significativas. A compreensão do comportamento humano e das bases neurológicas da tomada de decisão e escolhas morais pode contribuir para um diálogo mais informado sobre como construir sociedades justas e inclusivas.
Ao abraçar o conhecimento científico, mas também mantendo um foco nas preocupações humanas e nos valores éticos, podemos dar origem a um renascimento do humanismo que se baseia na busca compartilhada por uma compreensão mais profunda do Mundo e na construção de um futuro mais justo e compassivo. O renascimento do humanismo pela Ciência não representa um antagonismo entre duas abordagens aparentemente opostas, mas sim a união de perspetivas complementares que podem enriquecer e elevar tanto a nossa compreensão do Mundo quanto o nosso compromisso com os valores humanos.
Este artigo foi publicado na edição de outono da revista Líder. Subscreva a Líder aqui.