No dia 12 de outubro, Portugal entrou para o Guinness World Records por ter acolhido a Maior Aula de Programação do Mundo que juntou mais de 2000 participantes no Técnico Innovation Center, em Lisboa, entre os 12 e os 66 anos, e em paridade de género.
A aula, lecionada por Rodrigo Girão (Python Developer e Alumni do Técnico) e pelos professores Inês Lynce e Arlindo Oliveira, do Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa, percorreu três capítulos: Algoritmia e Programação por objetos, Desenvolvimento em Python e Inteligência Artificial. Do outro lado, estavam cerca de 1800 alunos universitários, de vários pontos do país e áreas de formação, desde a Engenharia Informática à Psicologia.
A iniciativa, da autoria da Magma Studio e do Instituto Superior Técnico reforça o posicionamento de Portugal nos mercados e comunidades internacionais como um hub tecnológico de elevada qualificação. Contudo, apesar dos vários incentivos e da evolução das mentalidades, continua a existir falta de representatividade feminina na ocupação de vagas nas áreas das tecnologias de informação no ensino superior
A Líder aproveitou o momento para falar com Inês Lynce, atual professora catedrática no Departamento de Engenharia Informática do IST, presidente do INESC-ID, codiretora do programa CMU Portugal e há mais de 20 anos investigadora na área da inteligência artificial e do raciocínio automático.
Qual foi a sensação de fazer parte deste momento?
A sensação de fazer parte de um momento tão importante para a história da programação em Portugal, e no mundo, foi única, resultante de um misto de nervosismo e entusiasmo. Nervosismo, em antecipação, por ter uma audiência tão numerosa e nunca ter lecionado uma aula naquelas condições. Entusiasmo por ser uma iniciativa empolgante e com potencial para ser um evento marcante para todos os participantes.
Como foi feito o recrutamento dos ‘alunos’?
Apesar de não ter estado envolvida no processo de recrutamento, tenho conhecimento de que a informação relativa à iniciativa foi partilhada junto dos estudantes do Instituto Superior Técnico (IST), mas também junto dos alunos das restantes instituições de ensino superior do país. As candidaturas foram feitas através de um link de inscrição e, posteriormente, os candidatos passaram por uma fase de seleção, caracterizada pela abertura das portas do IST a alunos de diversas regiões geográficas, de variadas faixas etárias e distintos percursos académicos. Uma das questões pelas quais o evento primou foi pela paridade de género, na medida em que a Magma Studio e o IST quiseram demonstrar que a programação é uma área atrativa para qualquer pessoa independentemente do género.
Como funcionou na prática o momento da aula?
Para mim o mais difícil foi definitivamente preparar a aula e interiorizar o espírito inerente à iniciativa. Tive a honra de ser primeira pessoa a lecionar esta aula tripartida. Sabia que tinha 20/25 minutos disponíveis e que com esse tempo tinha de ‘criar memórias felizes’ que ficassem associadas à programação. A partir daí surgiu a ideia de fazer aviões de papel, mencionar o cubo mágico e jogar sudoku. Foi determinante a visita ao espaço no dia anterior, praticamente já montado, para interiorizar o ambiente que me esperava. Para além disso, e é crucial destacar este aspeto, foi muito importante o teste de ideias que fiz com as minhas filhas de 11 e 14 anos e que começou vários meses antes da grande data.
Apenas 12% dos alunos matriculados são mulheres. Com uma taxa de empregabilidade tão elevada, por que ainda é difícil atrair talento feminino para este setor?
Há um estigma de que a tecnologia é uma área predominantemente masculina, mas não há necessidade para que isso se mantenha, porque, como vimos na Maior Aula de Programação do Mundo, as mulheres também têm interesse em acompanhar os avanços digitais e em ser agentes ativos na mudança. Vejo a resolução deste problema considerando duas vertentes. A primeira a nível da sociedade, que requer um esforço coletivo. Temos de superar o preconceito de que os computadores são masculinos. Este preconceito está tão enraizado nas gerações mais velhas que, até de uma forma inconsciente, levam muitos a torcer o nariz quando uma rapariga manifesta que está a pensar escolher uma profissão tipicamente masculina. Se é essa a sua vocação, temos de ajudá-la a concretizar esse potencial e evitar perguntas preconceituosas como “Tens a certeza? Os teus colegas vão ser quase todos rapazes.” (O mesmo se deve aplicar a outras áreas onde a realidade é o oposto.) A segunda vertente é a nível institucional, as instituições académicas têm de acolher e empoderar as raparigas. Pode ser desanimador contar com os dedos de uma mão o número de colegas do sexo feminino, por isso é necessário promover a ligação entre elas, mostrar que têm voz. Em muitas instituições existem iniciativas destinadas apenas a raparigas com este objetivo.
Quais as skills que destaca para a área de programação?
Método, rigor e pensamento analítico. Algo que é comum a muitas outras áreas, com a diferença de que na programação não há margem para erro: um programa ou funciona como é esperado ou não funciona.
Homens e mulheres fazem programação da mesma maneira?
Não existe uma distinção de género na qualidade da programação em Portugal. Aliás, alguns estudos realizados com crianças do 1º ciclo, demonstram que quando lhes é ensinado pensamento computacional, não existe qualquer diferença no seu racional. O que parece é existir, posteriormente, um desinteresse das raparigas por esta área, resultante de um preconceito social que associa a tecnologia a rapazes apenas.
Quais são as suas áreas ‘preferidas’ neste universo da tecnologia?
No vasto universo da tecnologia, posso afirmar que a inteligência artificial, que foi a minha área de especialização da licenciatura de 5 anos, é aquilo que mais me faz vibrar. E dentro da inteligência artificial, o chamado raciocínio automático, que contrasta com os LLMs (Large Language Models) do qual o ChatGPT é um exemplo paradigmático. Os LLMs têm o mérito de ter trazido a inteligência artificial para a ribalta. Mas existe uma outra inteligência artificial, mais “lenta” que requer rigor.
Que aula gostaria ainda de lecionar?
Respondendo ao contrário: não gostaria de lecionar a chamada “última aula” – que é uma inevitabilidade. Para mim poder ensinar é um privilégio. Mais do que partilhar conteúdos, que atualmente estão à distância de um click, um professor tem o papel determinante de motivar os alunos, revelar ângulos diferentes de uma mesma realidade e fomentar o espírito crítico. Os professores devem mostrar aos seus alunos que a sua sala de aula é um espaço seguro para dar asas à criatividade, abrir portas e quebrar barreiras. Em tempos tinha a ideia de que cabia essencialmente aos professores do ensino básico marcar os alunos. Hoje acredito que um professor universitário pode fazer a diferença, da mesma forma que os meus alunos fazem a diferença no meu percurso.
Créditos de imagem: João Gregório