“É o medo que nos tolhe e, direta e indiretamente, nos inibe de expandirmos a nossa potência de vida, e mesmo a nossa vontade de viver. De certo modo, pode perguntar-se se a própria não-inscrição, toda essa atividade saltitante do ‘toca e foge’, esse constante desassossego dos portugueses, não provém do medo. Porque este arranca o indivíduo ao seu solo, desapropria-o do seu território e do seu espaço, deixa-o a sobrevoar o real, em pleno nevoeiro.”
José Gil, Portugal, Hoje- O Medo de Existir
José Gil, filósofo português, ficou conhecido pela sua obra Portugal, Hoje – O Medo de Existir. Nesse livro, o filósofo aborda de forma profunda o medo e o nosso modo de ser portugueses ancorado neste sentimento que se apropria da nossa vontade e da nossa razão. Inaugura este pensador um conceito que chama de não-inscrição que abarca este modo de ser identificado como um ‘toca e foge’ com raiz no medo.
O medo é um sentimento constitutivo, é a nossa essência e está de uma certa maneira relacionado com a finitude que nos define,
está também associado à nossa frágil passagem pela vida, à vulnerabilidade dos nossos corpos, à avalanche de sentimentos a que somos submetidos todos os dias, uns atrás dos outros. O conceito de não-inscrição introduzido por José Gil, ajuda-nos a compreender o medo e a portugalidade, assustada, de uma forma muito acutilante. Toca no âmago da questão do ser, e em concreto do ser português.
Para percebermos o que é esta não inscrição é relevante saber o que significa inscrição. Para o filósofo significa: “Produzir o real. É no real que um ato se inscreve porque abre o real a outro real. Não há inscrição imaginária e a inscrição simbólica (apesar do que pretende a psicanálise) não faz mais do que continuar a realidade já construída. Quando o desejo não se transforma, o Acontecimento não nasce, e nada se inscreve.” Esta produção do real, a transformação do desejo fazendo nascer o acontecimento são manifestações de inscrição. É aqui que, na perspetiva do pensador, o ser português se manifesta, uma vez que a sua trajetória histórica o foi acometendo de uma certa pequenez, negando o excesso, afirmando uma primazia do ser pequeno e ‘ser certinho’. Segundo José Gil, “o ser pequeno é a estratégia portuguesa de permanecer inocente, continuando criança.”
E depois há o queixume, há frases que se ouvem muitas vezes, como a de “ter vergonha de ser português”. Este queixume e vergonha funcionam como tubo de escape perverso que ajuda a viver, mas, como frisa o filósofo, “continuando o esmagamento do individuo- pelo destino, pela ‘desgraça’ pelo ‘pais’. O queixume é uma técnica de socialização interiorizada e que faz convergir as pessoas vivendo em grupos alimentados por esta forma de afeto social esmagador.
A expressão que ainda hoje ouvimos vezes sem conta, nas conversas entre amigos, nos debates políticos, dentro das organizações é a seguinte: “fala-se, fala-se e nada de faz “.
José Gil, encontra aqui o tal modo de ser, a tal não-inscrição portuguesa. Como o próprio frisa: “o sujeito da enunciação refere-se aos outros (tal como no queixume), a um outro geral e abstrato que constitui a coletividade de que esse mesmo sujeito se exclui. Ele próprio que se julga real, desrealiza-se, evapora-se, transferindo-se para um grupo de eleitos que avalia, emite juízos, culpabiliza, atribui sanções e justas penas.”
Nesta frase podemos perceber um dos traços da não-inscrição identificada no ser português, a evaporação e desrealização do sujeito. Aquele que fica de fora do campo de ação, do real, assumindo uma existência imaginária. Esta existência imaginária, feita de julgamentos que incidem sobre um coletivo abstrato a quem é exigida a ação, reforça a ideia de infantilização acima referida. Colocar num ser imaginário as culpas do não acontecimento é o que acontece com as crianças quando lhes perguntamos quem fez a asneira ou quem devia fazer as coisas bem. A tendência será atribuir culpas e responsabilidade a personagens imaginárias ou ficcionais: foi o Mickey que fez a asneira e será o Hulk que nos vai salvar.
Na base desta não inscrição, muito bem identificada por José Gil, estão o medo e os estratagemas tipicamente portugueses para o enfrentar.
Uma forma, pois, diferente de enfrentamento do medo, a nossa, a portuguesa, através da não inscrição, deste ser e não ser ou de estar e não estar. Deste queixume criador de laços afetivos, deste ser pequeno e certinho para não ofender. Este ‘falar, falar e não fazer’ atribuído a um sujeito abstrato, imaginário é uma forma perversa de enfrentar o medo, mas parece ser a nossa.
Este artigo foi publicado na edição nº 30 da revista Líder, cujo tema é ‘Enfrentar’. Subscreva a Revista Líder aqui.