Totalitarismos e ideias antigas parecem florescer mais do que nunca, num mundo que já não se revela tão democrático como antes. A história não se repete, mas parece rimar e, em momentos como o que a humanidade atravessa, é preciso resistir. «A diferença entre as pessoas que decidem agir e as pessoas que decidem resistir, é que quem resiste escolhe pensar».
É Samantha Rose Hill que o afirma, filósofa e especialista em Hannah Arendt, na sua participação no Festival Internacional de Filosofia Espanto, que aconteceu entre os dias 19 e 22 de junho, em Cascais.
A filósofa trouxe reflexões profundas sobre o significado da existência e a relevância do pensamento de Arendt para os desafios contemporâneos.
A filósofa abriu e fechou a sua intervenção com uma questão central: «De onde vem o vosso propósito?» Esta pergunta é o cerne do pensamento humano e da forma como construímos narrativas que dão sentido às nossas vidas, tanto individual como coletivamente.
A narrativa e o pensamento sobrepõem-se aos factos
Hill destacou que, para Hannah Arendt, os factos, por si só, não são suficientes. «O que importa é contar a história», afirmou, explicando que os seres humanos, enquanto «animais narradores», criam significado através das histórias que contam. Estas histórias, construídas com o vocabulário herdado e moldado pela experiência, são a base da nossa compreensão do mundo. Arendt desafia-nos a repensar esse vocabulário, a questionar as narrativas herdadas e a construir novas formas de interpretar a realidade.
A filósofa partilhou episódios marcantes da vida de Arendt para ilustrar a sua relevância. Em 1933, após a queima do Reichstag, Arendt renunciou à carreira académica, declarando: «Não quero ter nada a ver com intelectuais.» Desiludida com os ‘pensadores profissionais’, que considerava mal equipados para enfrentar crises reais, dedicou-se ao ativismo político. Samantha relatou como Arendt transformou o seu apartamento em Berlim num refúgio para comunistas em fuga e foi presa pela Gestapo por investigar continuamente notícias antissemitas. Foi presa por ler demasiados jornais, algo considerado suspeito numa académica.
Após a prisão, Arendt fugiu para França, onde trabalhou com organizações como a Youth Aliyah, ajudando jovens judeus a escapar para a Palestina. Hill descreveu a sua detenção num campo em Gurs, onde considerou o suicídio, mas conseguiu escapar numa fuga em massa, juntamente com mais de 60 mulheres que falsificaram documentos de saída. Chegou a Nova Iorque em 1941, com apenas 25 dólares no bolso, iniciando uma nova fase da sua vida. Estes episódios, segundo Hill, moldaram o pensamento de Arendt, refletido na obra ‘As Origens do Totalitarismo’ (1951), um livro que analisa o antissemitismo, o imperialismo e o totalitarismo.
Totalitarismos que se repetem
Hill explicou que a obra de Arendt ganhou nova relevância com a eleição de Donald Trump em 2016, quando ‘As Origens do Totalitarismo’ se tornou um bestseller. «Por que lemos um livro de 1951 para entender o século XXI?», questionou.
A resposta está na capacidade de Arendt em identificar os elementos que cristalizam em movimentos totalitários: o antissemitismo como ferramenta política, a fusão entre economia e política no imperialismo, e o «mal radical» como processo de desumanização. O antissemitismo torna-se uma ferramenta. Torna-se uma ferramenta política para fazer o trabalho do Estado e já não tem nada a ver com a desigualdade dos povos judeus.
O antissemitismo é um presságio das democracias que colapsam.
Os interesses económicos colaboram com esta ideia de Estado-Nação, que se alinha com ideias imperialistas e colonialistas. «Os empresários libertaram-se dos seus assuntos económicos privados porque precisavam do aparelho do Estado para promover os seus empreendimentos coloniais», diz.
Extremismos proliferam em desertos de ideias. Qual a solução?
Arendt argumentava que o totalitarismo prospera onde há solidão (verlassenheit), um isolamento que não é apenas estar sozinho, mas sentir-se abandonado pela sociedade. «É a solidão que alimenta os movimentos totalitários», diz Hill, citando Arendt.
Esta condição, agravada pela propaganda e pela ideologia, leva as pessoas a duvidarem das suas próprias experiências. Hill enfatizou a definição de Arendt de ideologia como uma «lógica de uma ideia» que distorce a realidade, comparando-a ao mito de Procusto, que mutila para encaixar a experiência num molde pré-definido. «Vivemos em tempos extremamente ideológicos. A história é tão antiga que dói contá-la novamente aqui, hoje», alertou
A pressão para adotar narrativas simplistas é constante e devolve-nos à questão inicial: de onde vem o nosso propósito? Como estão as narrativas a moldar os nossos pensamentos?
A ideologia é a maré que nos afasta da nossa experiência de estar no mundo como um ser humano único que vive com os outros.
Arendt, segundo Hill, defendia que a resistência ao totalitarismo começa no pensamento. «Pensar é uma conversa comigo mesmo», escreveu Arendt, um processo de manter harmonia com a própria consciência. A liberdade reside na decisão de agir, na ‘natalidade’ – a capacidade de iniciar algo novo.
Hill concluiu com um apelo: precisamos de uma nova linguagem para narrar o presente. «Não estamos em 1933, nem 1951. O mundo mudou, e as velhas narrativas já não servem», afirmou. Num mundo globalizado, mas fragmentado pela solidão e pela ideologia, a filósofa desafia-nos a criar histórias que reflitam a nossa experiência autêntica. «Na hora da verdade, há que tomar uma decisão, e cada um de nós deve decidir como agir agora», conclui, ecoando as palavras de Arendt.