Os motores dos blindados fizeram-se ouvir primeiro na encosta de Monsanto, antes de o sol nascer. Na mesma hora em que grupos de paraquedistas ocupavam as bases de Tancos, Monte Real e Montijo, um pelotão avançava sobre o Comando da Região Aérea em Lisboa, cortando comunicações, erguendo barricadas improvisadas, testando a frágil fronteira entre disciplina e motim. A cidade acordou com rumores de aviões parados na pista, quartéis sitiados e estradas militares fechadas. Sinais de que o país, 19 meses depois do 25 de Abril, voltava a pisar chão movediço.
Dentro do Palácio de Belém, o Presidente Costa Gomes tentava segurar o tabuleiro inteiro com as mãos. Foram muitas as chamadas urgentes, memorandos rasurados e encontros à porta fechada, perscrutavam-se as fissuras de um poder dividido: de um lado, os oficiais próximos do COPCON e de Otelo Saraiva de Carvalho; do outro, os moderados do Grupo dos Nove, alinhados com Ramalho Eanes. Naquelas horas compactas, cheias de passos rápidos em corredores estreitos, o país aproximou-se perigosamente da fronteira que separa a tensão política da guerra civil.
Tudo o que aconteceu depois — as negociações, o estado de sítio, os confrontos armados, os mortos — nasceu naquele momento de sombras em que Lisboa respirou fundo e percebeu que a revolução estava prestes a ser disputada pela força.
O que aconteceu realmente: movimentos, forças, decisões
Os acontecimentos do 25 de Novembro de 1975 estão hoje mapeados ao detalhe nos arquivos da RTP que fixaram as imagens nervosas das madrugadas militares, nos relatórios das unidades envolvidas, e nas obras de António Costa Pinto, Maria Inácia Rezola, José Pedro Castanheira ou mesmo nos depoimentos produzidos na Comissão Parlamentar de Inquérito de 1976. A cronologia é consensual, quase parametrizada pela própria sucessão dos atos: ainda mal a noite cedera, grupos de paraquedistas inconformados já tinham tomado Tancos, Monte Real e Montijo; noutro extremo da cadeia militar, a Região Aérea de Monsanto caía nas mãos de oficiais próximos dos sectores mais radicais do MFA, fechando comunicações e alimentando a suspeita, antiga e latente, de que uma parte da força aérea simpatizava com a ruptura.
Ao mesmo tempo, o COPCON, dirigido por Otelo Saraiva de Carvalho e visto pelos moderados como um centro de autoridade demasiado autónomo para o equilíbrio do PREC, tornava-se foco de inquietação. O Presidente Costa Gomes decretou o estado de sítio, enquanto os Comandos da Amadora, liderados por Jaime Neves, e os oficiais do Grupo dos Nove avançavam para retomar posições críticas. Houve confrontos em Lisboa e na periferia, resultando em três mortos, num país que percebeu, de súbito, a proximidade do abismo.
Os dias seguintes..
Nos dias seguintes, o COPCON seria dissolvido. E começou a disputa política que ainda molda a memória pública: o PCP e sectores da esquerda classificaram o dia como uma «viragem à direita», um travão às reformas em curso; os moderados descreveram-no como a defesa da democracia representativa. A historiografia segue essa clivagem: Costa Pinto e Rezola falam de uma sublevação parcial e mal coordenada, sem capacidade real para tomar o poder; figuras como Vasco Lourenço insistem que o risco de ruptura era concreto e crescente.
O 25 de Novembro permanece assim num território ambíguo, onde os factos estão estabilizados, mas o seu significado político continua em disputa. O que divide vai além da madrugada, essa sobrevive nítida, o que fragmenta resvala, pois, a interpretação do perigo que Portugal respirou quando os motores dos blindados fizeram vibrar o chão. E quase todos têm emoções distintas.
A disputa historiográfica: duas leituras que atravessam a política
A leitura crítica (à esquerda): um travão imposto pela força
Historiadores como Raquel Varela argumentam que o 25 de Novembro foi um momento de reconfiguração política que favoreceu a ala moderada e encerrou a experiência de democracia participativa do PREC. Varela sustenta em História do Povo na Revolução Portuguesa (2014) que os paraquedistas estavam, sobretudo, a contestar punições internas e que não existia um plano de tomada do poder por forças radicais capaz de instaurar um regime revolucionário.
Para este campo, o 25-N não salvou a democracia. Limitou o processo a um modelo representativo, afastando experiências de autogestão, plenários e participação direta que tinham marcado 1974–75. A narrativa da esquerda vê o episódio como o encerramento abrupto de um ciclo político mais vasto.
A leitura institucionalista e liberal (centro e direita): uma intervenção decisiva
Do outro lado, figuras como Vasco Lourenço, Ramalho Eanes e Jaime Neves sustentam que o país correu risco real de confronto armado entre facções militares. Lourenço descreve o 25-N como «o dia em que o MFA recuperou a unidade necessária para cumprir o mandato democrático». Eanes, nas suas memórias e depoimentos parlamentares, fala de «uma escalada perigosa» alimentada por sectores que «já não reconheciam a cadeia de comando».
O historiador e comentador Pacheco Pereira reforça esta leitura, embora com nuances. Nos seus textos e comentários televisivos, defende que existia uma tensão radicalizada no MFA e que alguns grupos tentavam alterar o rumo político. Além disso, acredita que a reação dos moderados foi eficaz e evitou um cenário de descontrolo, mas que a narrativa heroicizada de «salvação nacional» simplifica um processo complexo.
Para Pacheco Pereira, a direita tende a cristalizar o 25-N como mito fundador alternativo ao 25 de Abril, enquanto a esquerda tem tendência a minimizar o risco real de fratura.
O debate contemporâneo: celebração, memória ou disputa?
A partir da década de 2010, com as comemorações dos 40 e depois dos 50 anos do 25 de Abril, o 25 de Novembro voltou ao centro da arena pública.
O CDS, com Nuno Melo, e uma parte do PSD, defendem o 25-N como «a segunda data fundacional da democracia portuguesa». Em debates parlamentares (2019–2023), reforçam a ideia de que a intervenção militar evitou uma guerra civil e estabilizou a democracia.
A esquerda (PCP, BE, Livre e parte do PS)
Recusa celebrar a data como «vitória». Prefere lembrá-la como um episódio ambíguo que travou possibilidades políticas então em aberto. PCP e BE denunciam a instrumentalização «revisionista» da data. Posição explícita nos seus discursos parlamentares.
O campo académico institucional
Historiadores como Maria Inácia Rezola argumentam que o 25-N deve ser integrado no ciclo revolucionário, não isolado como evento fundador autónomo. Rezola defende que o episódio selou o triunfo do modelo democrático representativo e encerrou a fase revolucionária, um processo mais orgânico do que militar.
O que está realmente em disputa?
A disputa não é apenas sobre o passado. É sobre o significado da democracia portuguesa. Para a direita, o 25-N simboliza a escolha pela estabilidade, moderação e legitimidade eleitoral. Para a esquerda crítica, simboliza a interrupção de experiências sociais e formas de organização popular que o pós-25 de Abril tinha aberto. Já o centro académico, considera ter sido um episódio crucial, mas não isolável do clima político do PREC.
Em suma, o 25 de Novembro funciona como um espelho: cada campo revê nele a democracia que defende.
E agora, quando volta a celebração institucional?
Com a decisão recente de institucionalizar novamente a cerimónia do 25 de Novembro, reacende-se a luta pela narrativa. Há quem veja na comemoração um gesto de equilíbrio histórico, que falta desde o final dos anos 70. Há quem veja uma reescrita política destinada a contrabalançar o peso simbólico do 25 de Abril.
A verdade é que a efeméride não cabe numa leitura única nem deve caber. É um episódio em que forças armadas, partidos, movimentos populares e lideranças militares agiram sob tensão extrema, num país em aceleração histórica. Foi o fim do PREC, mas não foi o fim da revolução de Abril, que se prolongou na Constituição de 1976 e no sistema democrático que vigora até hoje.
Assim, cinquenta anos depois, permanece um capítulo aberto, disputado e vivo, um daqueles dias em que a história não se escreveu sozinha, mas foi moldada à força por homens que mergulhados em medos e convicções acreditavam estar a salvar o país de qualquer coisa que nunca chegou a acontecer… e que talvez só por isso não aconteceu.
Hoje, é celebrada a partir das 11 da manhã uma sessão solene evocativa do 25 de Novembro de 1975 na Assembleia da República. Sem cravos vermelhos, mas com rosas brancas.
Fotografia: Arquivo Torre do Tombo



