A capacidade criativa da inteligência artificial (IA) mostra que o humano não se pode definir como sendo o ser exclusivamente criativo, mas que aquele que é criativo é já sobre-humano.
O actual debate académico sobre IA e criatividade é marcadamente antropocêntrico, isto significa que o debate ainda avalia a criatividade a partir exclusivamente da perspectiva humana. Seja quando afirma que a IA não pode ser criativa tal como o humano ou, pelo contrário, quando afirma que já é tão criativa como o humano, ou ainda mais criativa. Se os estudos do Antropoceno mostram que um foco exclusivo na perspectiva humana bloqueia a nossa capacidade de pensar a sustentabilidade num sentido mais alargado incluindo outros seres vivos, é preciso fazer o mesmo gesto no debate sobre a IA e a criatividade: pensar a criação para além do humano.
A razão é simples: limitar a criatividade ao humano, apenas mostra que o humano é da ordem do limitado, que recusa aquilo que o questiona, nomeadamente, que a criatividade não é apenas da ordem humana, que não lhe pertence exclusivamente. Contudo, esta recusa tem uma justificação: visa evitar uma “perda antropológica”, porque os humanos, ao cederem a capacidade de criatividade à IA, parecem ceder algo essencial de si, cedem o potencial de criatividade como aquilo que define exclusivamente o humano em oposição à IA. Os humanos sentem que foram substituídos, que algo lhes foi tirado.
Estudos feitos com poesia e música criada por IA mostram algo revelador. Os humanos, quando não sabem que esses objectos artísticos são feitos pela IA, afirmam apreciar esses objectos. Contudo, quando são informados de que foram feitos pela IA, arrependem-se dessa apreciação e consideram-na errada. Estes estudos revelam que rejeitar a criatividade da IA pode decorrer de um preconceito antropocêntrico.
Gilbert Simondon, um pensador da tecnologia francês, argumenta que quando as máquinas conseguem fazer coisas que apenas os humanos conseguiam fazer, não significa apenas que as máquinas tiraram uma função que apenas pertencia ao humano. Pelo contrário, era o humano que estava a fazer algo que poderia vir a ser substituído por uma máquina no futuro. O argumento é feito com um foco em funções altamente repetitivas, mas ele pode ser usado também para pensar algo menos repetitivo como a criatividade. Se a IA consegue ser tão ou mais criativa que o humano, significa que a criatividade humana já estava disponível para vir a ser realizada por IA, que ela não era apenas humana.
A criatividade é algo que leva o humano a conceber algo que não está limitado pela forma humana, por isso é que o humano criou a IA. Significa que o humano cria, no presente, coisas que só máquinas do futuro ainda não imaginadas podem vir a replicar. Não se deve então temer ser substituído pela IA em termos de criatividade, mas criar com a IA para se descobrir o sobre-humano que todo o humano tem. Quando a IA é criativa, ela não afirma que o humano deixou de ser criativo, mas que a criatividade no humano já não era apenas humana, mas sobre-humana.

